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Todo mundo joga. Ainda faz sentido insistir em um estereótipo gamer?

Jogos são consumidos por um público muito maior do que os chamados gamers. Por que então os fãs de videogames ainda são vistos como um nicho fechado?

Beatriz Blanco
Beatriz Blanco

O que é ser um gamer? É apenas jogar em qualquer plataforma, do smartphone ao PlayStation 5? Sua vizinha viciada em Candy Crush é uma gamer? Os games estão com a popularidade em alta e definitivamente romperam a bolha do nicho. 

Apesar disso, o imaginário do que é ser um gamer ainda é muito ligado a estereótipos de ‘nerds’ que parecem ter saído de The Big Bang Theory. Outra imagem famosa retrata uma suposta cultura gamer muito jovem e incompreensível para os não iniciados, repleta de luzes coloridas, arenas lotadas, streamers milionários e dancinhas do TikTok.

Nenhum desses dois perfis se sustenta como representante majoritário dos consumidores de jogos quando olhamos os dados de mercado no Brasil. 72% da população brasileira joga, e 40% desse público é adulto na faixa etária entre 20 e 30 anos. Por que então esses clichês do gamer ainda são tão fortes?

Para entender a persistência da identidade gamer, precisamos voltar à origem dos videogames como produto. Ou seja, como eles surgiram na cultura pop, o pânico moral que eles causaram nos anos 1990 e como quem jogava naquela época se enxergou.

CBLoL 2019 2ª Etapa Final

Cena da final da segunda etapa do CBLoL 2019

Bruno Alvares/Cesar Augusto/Pedro Pavanato/Riot Games

Como se formou a identidade gamer

Não existe uma resposta única que solucione o mistério do apego ao imaginário do gamer como um membro de um nicho exclusivo para iniciados, mas cada um desses fatores é parte importante do quebra-cabeças.

Como boa parte da tecnologia computacional que usamos hoje, os videogames são subprodutos da pesquisa militar: Ralph Baer (1922-2014) é considerado o pai dos videogames. Mas, na década de 1960, ele era um engenheiro empregado na indústria bélica que teve a ideia do primeiro console ao desenvolver um controle para mísseis teleguiados por meio de monitores de TV.

Na mesma época, Nolan Bushnell e Ted Dabney, fundadores da Atari e criadores da primeira máquina de fliperama, eram jovens estudantes imersos na cultura hippie de São Francisco. 

Apesar das imensas diferenças culturais entre o meio militar e a contracultura americana, os ‘pais’ da indústria de games têm em comum seu perfil demográfico. São homens jovens, brancos e de classe média. Portanto, esse perfil acabou prevalecendo também entre os trabalhadores e consumidores da indústria de games.

Mas nem sempre esse foi o público prioritário dos jogos. A Atari, que reinou como líder de mercado absoluta entre 1972 e 1983, via seus produtos como aparelhos para o entretenimento de toda a família. Suas campanhas publicitárias tinham diversos tipos de pessoas com controles nas mãos: mães, casais de namorados e crianças, tanto meninas quanto meninos.

Ainda não havia uma definição clara de um nicho gamer, mas isso começou a mudar na segunda metade dos anos 1980, após a Atari perder sua liderança em meio à uma grande crise no setor que ficou conhecida como Crash dos Videogames de 1983.

Sega e Nintendo mudam o jogo

A partir dessa ruptura, o mercado se recuperou com a chegada de duas grandes empresas japonesas no ocidente: Nintendo e Sega. Ambas tinham uma abordagem publicitária muito mais nichada. A Nintendo anunciou seus consoles como brinquedos para meninos. Já a Sega também queria o público masculino, mas preferiu pré-adolescentes e adolescentes.

Surge aqui a identidade gamer como nicho publicitário, marcada pela disputa entre as duas empresas, acirrada e cheia de trocas de farpas. Uma das campanhas publicitárias da Sega, por exemplo, vendia o Genesis —o console que ficou conhecido no Brasil como Mega Drive— com a frase “Genesis does what Nintendon’t”. Ou seja: “o Mega Drive faz o que a Nintendo não é capaz”.

Campanha publicitária do Mega Drive

Propaganda do Mega Drive nos anos 1990

Vídeo ataca o console da rival Nintendo: "Mega Drive faz o que a Nintendo não é capaz"

Junto com a identidade gamer nasceu a guerra dos consoles. Este é um elemento importante para a manutenção de um nicho em que muitas vezes os consumidores adotam o nome “de torcida” de suas empresas preferidas: sonystas, caixistas (em referência ao Xbox), nintendistas, etc. 

E lógico, fãs apaixonados são um prato cheio para as empresas, que continuam investindo na manutenção da identidade gamer porque ela é bastante lucrativa.

O imaginário criado por Sega e Nintendo nos anos 1990 também sobrevive porque, além do apelo publicitário, há uma forte conexão com a cultura pop. As duas empresas apostaram em fantasias de poder geralmente direcionadas a homens. 

Por isso, as campanhas exploravam temas como heroísmo, batalhas acirradas, super atletas, carros, armas… todos eles recorrentes em produtos culturais populares na época e agora.

Nós contra todos

Ainda nos anos 1990, o videogame se viu envolvido no tipo de pânico moral que décadas antes atingiu os quadrinhos, mobilizando pais preocupados com a representação de violência em uma mídia consumida por suas crianças. 

Esses pânicos morais são outro componente formativo importante para entender a identidade gamer. Episódios como o massacre em Columbine, em 1999, foram associados pela mídia aos videogames. Como consequência, boa parte dos gamers se sentiram rejeitados e perseguidos. Por isso, eles se apegam a um sentimento de ‘nós contra os outros’ que ainda é bastante presente. 

Propaganda MortaL Kombat

Propaganda de Mortal Kombat nos anos 1990 mostra mudança de foco do mercado para meninos

Reprodução/Midway

Em uma pesquisa realizada em 2017 pela Talk Inc. no Brasil, 41% dos entrevistados que se identificam como gamers acreditam que sofrem preconceito da maioria das pessoas. O sentimento de exclusão é um poderoso formador de comunidades que respondem de forma intensa e emocional a tudo que seja nichado.

Por fim,a auto identificação é um fator essencial para a manutenção da identidade gamer, seja pela percepção de comunidade fechada, seja pela estereotipação que a maior parte dos fãs de games percebe como preconceito.

De acordo com a pesquisadora e professora Adrienne Shaw, da Temple University, referência em estudos relacionados à identidade gamer, apenas jogar não é o suficiente para definir uma pessoa como gamer. A formação de identidades é um processo no qual uma pessoa se auto define a partir de várias referências que ela encontra em suas relações e em seu ambiente.

Por isso, talvez, sua vizinha viciada em Candy Crush não se vê como uma gamer, já que as imagens de gamers com que ela tem contato por meio da publicidade e da imprensa —aquelas cheias de luzes neon e de nerds estereotipados— não conversam com suas experiências pessoais a ponto de ela se sentir confortável para enxergar nessa tribo uma identificação.

Com todos esses fatores somados, a identidade gamer se retroalimenta, mesmo que não corresponda à diversidade cada vez maior do público que joga na atualidade.

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QUEM FEZ
Beatriz Blanco

Beatriz Blanco

Beatriz Blanco é doutoranda em comunicação, pesquisa videogames e questões de gênero no Brasil, e é professora na área de design e jogos digitais. Também escreve e produz podcasts sobre games e cultura pop. Na Tangerina, assina a coluna Cultura Gamer, que faz a ponte entre o universo gamer e esse mundão aqui fora.

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