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Guillermo Del Toro usa o clima de desesperança do cinema noir para ampliar seu universo de criaturas incompreendidas
É muito curioso como a palavra “geek” tem um papel importantíssimo no novo filme do diretor mexicano Guillermo Del Toro, O Beco do Pesadelo (2021), que chega ao Star+ no dia 16 de março de 2022. É claro que o sentido dela é totalmente diferente do que usamos hoje em dia, já que estamos falando de uma adaptação de um livro de 1946 e que utiliza o linguajar popular característico daquela época.
Naquele tempo, na passagem da década de 1930 para 1940, o geek era um “selvagem”. Uma atração bizarra de circos/parques de diversão itinerantes que comia animais vivos para chocar a plateia. Um termo, que com o tempo, passou de descrever algo repulsivo para uma pessoa aficionada em tecnologia/cultura pop. Ser geek hoje é legal. Virou tendência.
O próprio Del Toro é talvez o maior case de sucesso de um geek em Hollywood. Contra todas as probabilidades, ele se estabeleceu nesse mercado absurdamente exclusivo. Você pode contar nos dedos de uma mão o número de cineastas “estrangeiros” que começaram sua carreira fazendo filmes de terror independentes em seu país natal e que hoje têm cacife suficiente para escolher projetos no mainstream do cinema norte-americano. E sem perder sua essência de garoto crescido brincando com seus action figures, que a cada filme nos convida a brincar com ele.
O entusiasmo de Del Toro brilha através de seus filmes mais leves, enquanto seus títulos mais sombrios mostram seus dons como um dos melhores cineastas de terror da atualidade. Alguém que joga conscientemente com as regras do gênero, transformando-o em algo novo. Fresco como sangue da vítima nas presas de um de seus (muitos) monstros.
Não é de se estranhar o fato de que, após a consagração do Oscar de melhor direção por A Forma da Água (2017), Del Toro tenha optado por uma trama noir como seu projeto seguinte.
Cunhado em 1946 pelo crítico francês Nino Frank, o termo “film noir” se refere a um tipo de filme de suspense muito em voga nos anos 1940, com ambientação urbana, temática criminal e, claro, focado em anti-heróis. O cinismo e desilusão que transpiram nas narrativas noir são quase que a materialização de um sentimento de derrota em um mundo assolado pela ascensão do nazifascismo.
Como dizem por aí, o mundo dá voltas e, infelizmente, nos últimos anos, retornamos a esse estado de horror institucionalizado, no qual os monstros somos nós mesmos. E qual gênero poderia melhor expressar essa realidade do que o noir e seus personagens amorais, prontos para passar a perna em quem quer que seja para se dar bem? É exatamente esse universo que Del Toro utiliza para seu lado mais sombrio. Onde o sobrenatural é apenas um esquema para enganar trouxas e as pessoas são aquilo a se temer.
Na trama de O Beco do Pesadelo, Bradley Cooper é Stanton Carlisle, um andarilho que no final da década de 1930 acaba arranjando um trabalho em troca de comida em um parque de diversões itinerante. Lá, são apresentados todo tipo de show bizarro, como o da mulher elétrica, do homem cobra e do selvagem, o tal “geek” que falamos lá no começo do texto.
Ao conhecer a mística Zeena (Toni Collette) e seu marido/parceiro alcoólatra Pete (David Strathairn), ele se encanta por um número de adivinhação antigo da dupla que dependia de um intrincado livro de códigos. Com esses códigos, Stanton bola um show que pode levá-lo ao estrelato na cidade grande. Anos depois, já famoso como mentalista, ele cruza seu caminho com o da insinuante psicóloga Lilith Ritter (Cate Blanchett), com quem se alia para enganar membros da elite rica e poderosa da cidade de Buffalo.
Trailer do filme O Beco do Pesadelo (2021)
Guillermo Del Toro dá um tom mais pesado a noir clássico da década de 1940
Comparado à versão de 1947, O Beco do Pesadelo de Del Toro se beneficia de não sofrer com a censura do Código Hays – um conjunto de normas morais aplicadas aos filmes lançados nos pelos grandes estúdios americanos entre 1930 e 1968 – e pesa a mão na violência. Mas o mais inusitado é que, por mais gráfica que ela seja, nada assusta mais o espectador do que a visão soturna e totalmente sem esperanças de uma humanidade condenada que faz do noir a versão terrena do terror.
Com fotografia, design de produção e direção de arte absolutamente deslumbrantes e uma dedicação absurda aos detalhes de suas tomadas cheias de simbolismos, Del Toro nos aterroriza com algo muito mais palpável, mesmo que remeta às produções da era de ouro de Hollywood, um período que o cineasta mexicano ama, fazendo de O Beco do Pesadelo um de seus filmes mais assustadores. Um pesadelo de imagens belíssimas que faz do atual geek, esse sim, um verdadeiro selvagem.
Dois pelo preço de um: Labirinto do Fauno, tão cheio de simbolismos quanto este e igualmente focado em demônios bastante reais.
Presta atenção, freguesia: Na fotografia de Dan Laustsen, design de produção de Tamara Deverell e direção de arte de Brandt Gordon. Tudo absolutamente deslumbrante.
Rafael Argemon
Rafael Argemon é criador do perfil O Cara da Locadora no Instagram e também assina uma coluna com o mesmo nome na Tangerina, onde indica as pérolas escondidas nas plataformas de streaming. Cinéfilo e maratonador de séries profissional, passou por Estadão, R7, UOL, Time Out e Huffpost. Apaixonado por pugs, sagu e jogos do Mario.
Ver mais conteúdos de Rafael ArgemonTangerina é um lugar aberto para troca de ideias. Por isso, pra gente é super importante que os comentários sejam respeitosos. Comentários caluniosos, difamatórios, preconceituosos, ofensivos, agressivos, com palavrões, que incitam a violência, discurso de ódio ou contenham links vão ser deletados.
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