Cena do filme As Boas Maneiras
Dia Internacional da Mulher

Mulheres que tocam o terror: Diretoras dominam o gênero no Brasil

Diretoras brasileiras estão renovando o cinema nacional de terror e derrubando o mito de que mulher não gosta do gênero

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Gabriela Franco
Gabi Franco*
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Pra muita gente, falar em filmes de terror no Brasil é pensar em Zé do Caixão ou um ou outro nome masculino. E não por acaso. Durante muito tempo, os filmes de terror foram uma espécie de Clube do Bolinha —só os rapazes podiam entrar. 

As mulheres eram, no máximo, figurantes estereotipadas, quando muito as clássicas final girls, últimas sobreviventes da trama, que davam a sorte de não serem mortas pelo facão do psicopata mascarado. Só que este cenário, ainda bem, mudou radicalmente, tanto na frente quanto atrás das câmeras. 

A notícia boa para quem gosta de um bom susto é que agora temos mulheres transgredindo o status quo machista com diferentes olhares e abordagens do gênero.

“Por muito tempo, o horror foi construído falsamente como um gênero masculino, formado por grandes diretores e roteiristas, muito violento ou assustador para mulheres”, explica Gabriela Larocca, pesquisadora de cinema de horror, representação feminina e bruxas.

Felizmente, no Brasil, novos nomes têm reavivado a tradição iniciada pela pioneira Rosângela Maldonado nos anos 1970. Conhecida pelo trabalho como atriz ao lado de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, ela resolveu assumir a direção em filmes como A Deusa de Mármore (1978). 

Hoje, Juliana Rojas, Gabriela Amaral e Marina Meliande são alguns dos nomes que seguem no caminho aberto por Maldonado. Conheça um pouco dessas mulheres que estão revoando o cinema de terror no Brasil com um olhar para questões de gênero, classe e para a tradição. 

As sinfonias assustadoras e críticas de Juliana Rojas

Integrante do coletivo criativo Filmes do Caixote —ou, como eles descrevem, uma oficina de ideias, na qual a colaboração mútua é a chave— Rojas ganhou destaque inicialmente com o longa Trabalhar Cansa (2011), uma parceria com o amigo Marco Dutra, com quem ela vinha produzindo projetos desde a época da faculdade de cinema na USP (Universidade de São Paulo). Ali, já estavam visíveis alguns elementos fantásticos e de terror, com uma história em que acontecimentos inquietantes perturbam a vida de um casal de classe média. 

Em 2014 ela se lançou em um voo solo com Sinfonia da Necrópole, que enxergava um cemitério como um microcosmo, um espelho da metrópole por meio do qual discutia a lógica da divisão de classes. O resultado é um musical com ecos do dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht e dos filmes da Disney. 

Três anos depois, mais uma vez com Dutra, Rojas usou novamente o sobrenatural com suavidade e sofisticação para discutir as diferenças sociais que rasgam a sociedade brasileira em As Boas Maneiras (2017), estrelado por Marjorie Estiano. O linga ganhou o prêmio especial do júri do 70º Festival de Locarno, na Suíça. 

Ao invés de espíritos, foi a vez dos lobisomens assumirem o papel de protagonistas em uma trama cheia de mistérios, com interessantes reviravoltas e um olhar delicado sobre o feminino. 

Mudam os seres, permanece o estudo de personagens e da opressão do rico sobre o pobre. “Busco uma relação mais lúdica com o cinema e gosto também de evocar os filmes com os quais me divertia quando estudante. Isto é, os de fantasia e de terror”, explicou a cineasta, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo

O trabalho de Rojas exemplifica o que, para a pesquisadora Gabriela Larocca, é uma das principais contribuições das mulheres no cinema de horror: denunciar e descontruir recursos e estratégias que naturalizaram coisas como a espetacularização da violência contra o corpo feminino.

Por muito tempo, as mulheres e os monstros femininos foram representadas no horror a partir de subjetividades, ansiedades e medos masculinos. Quando dirigido, produzido e idealizado por mulheres, conseguimos ressignificar essas representações e figuras no gênero.

Gabriela Larocca

pesquisadora de cinema de horror

Depois do cinema, Rojas se aventurou pelas séries, dirigindo dois episódios de Boca a Boca (2020), produção que também traz elementos de suspense, estranhamento e discussões sociais —desta vez em meio à vida de adolescentes em uma cidadezinha do interior.

Por conta da pandemia, ainda vamos ter que esperar para ver na tela um novo filme de Rojas: ela se preparava para filmar Cidade; Campo, uma história sobre migração, mas teve que suspender os planos com a chegada da Covid-19.

Cena do filme As Boas Maneiras

As Boas Maneiras

Longa de Juliana Rojas e Marco Dutra retoma o tema dos lobisomens, um clássico do terror

O slasher na ponta da faca de Gabriela Amaral

Criada à base de intermináveis sessões de cinema não supervisionadas por adultos e de lançamentos de gosto duvidoso nas tradicionais locadoras, Amaralsabia que queria fazer cinema. 

Formada em Comunicação pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), foi estudar roteiro em Cuba e, ao voltar, tratou de começar a explorar o terror em curtas como A Mão que Afaga (2011) e Estátua (2014). Foi com seu poderoso longa Animal Cordial (2017), no entanto, que ela espalhou fartas doses de sangue pela telona. 

Diferente da obra cheia de nuances de Rojas, o filme de Amaral é mais porrada, mais direto, mais duro. Na trana, um assassinato em um restaurante faz todos os personagens (interpretados por nomes como Murilo Benício, Camila Morgado e Irandhir Santos) temerem por suas vidas.

Em meio a essa tensão, a produção lida com violência gráfica extrema e questões de sexo e nudez, o que faz com que seja de alguma forma associado ao tradicional gênero do slasher, aquele de Halloween ou Sexta-Feira 13. Os mesmos filmes que se tornaram referência para Amaral nos anos 1980 e 1990. 

Mas ela mesma faz questão, lá pelo meio da trama, de subverter o que se espera desse tipo de filme —incluindo aí o jeito como se retrata o tesão entre dois corpos, aqui muito menos sensual e muito mais aflitivo. 

Recentemente, em 2018, a cineasta optou por explorar o horror por meio do desconhecido no tenso A Sombra do Pai, sobre uma uma menina de 9 anos, órfã de mãe, que se torna responsável pela casa depois que o pai fica doente.

Assim como Rojas, Amaral também teve os planos para seu próximo filme adiados pela pandemia. Com filmagens planejadas para 2019, A Cadeira Escondida só deve ter sua produção iniciada este ano. O gênero, claro, ainda é o horror, mas agora tratando de exorcismo.

A Sombra do Pai

A Sombra do Pai

O terror de ter a infância roubada

O horror intimista de Marina Meliande

Temos aqui mais uma cineasta que despontou trabalhando em dupla. Da mesma forma que Rojas, a carioca Meliande construiu boa parte de sua linguagem por meio das experimentações ao lado do amigo Felipe Bragança. Os dois, em parceria com Daniel Caetano, fundaram a Duas Mariola Filmes —cujo objetivo declarado é investigar novos formatos e experimentações.

E foi em sua primeira experiência solo que ela chamou a atenção dos fãs de horror. Em Mormaço, lançado em 2019, no Festival de Rotterdam, na Holanda, ela trabalhou um tipo de terror diferente, mais intimista, numa pegada mais Robert Eggers, de A Bruxa. 

No Rio de Janeiro, no verão mais quente da história, a cidade se prepara para as Olimpíadas e Ana luta para defender uma comunidade ameaçada de remoção pelas obras do Parque Olímpico. Ao mesmo tempo, coisas estranhas começam a aparecer na cidade, principalmente em um prédio abandonado, com uma atmosfera absolutamente sufocante. E misteriosas manchas roxas passam a aparecer no corpo de Ana. 

Não é por acaso que cenários cotidianos são com frequência transformados em terror nos filmes de mulheres. Para a diretora e produtora Hilda Lopes, isso tem a ver com uma “realidade meio terrorífica” em que as mulheres já vivem. 

Todas crescem com um medo extra, o medo da violência, da integridade de seus corpos. Quando falamos em mulheres cis, pensamos também no medo da gestação e o peso da maternidade.

Hilda Lopes, produtora e diretora dos curtas Em Cima do Muro, Onze Minutos e Estela.

No cinema de Meliande, essas questões não aparecem na forma de sustos fáceis. A pegada aqui é outra.

“Gosto de lidar com essa poesia. Gosto da fábula, de fazer uma metáfora pra falar de algo político, que obviamente vai te levar para um outro lugar, que é o espaço do sonho, da utopia”, contou ela em entrevista ao site Papo de Cinema. “Então, acho que o cinema de gênero me ajuda a sair da pura denúncia, que não era o que queria fazer em termos de estilo”.

Mormaço

Mormaço

Horror fantástico e crítica social

Ter mais mulheres à frente de produções de horror não apenas revitaliza um gênero que por muito tempo foi visto como masculino, como também possibilita a abordagem de diferentes temas, imagens e histórias.

Gabriela Larocca, pesquisadora do gênero horror

* Com colaboração de Melissa Andrade

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Gabriela Franco

Gabi Franco

Editora de filmes e séries na Tangerina, Gabi Franco é criadora do Minas Nerds, jornalista, cineasta, mãe de gente, pet e planta. Ex- HBO, MTV, Folha, Globo… É marvete, mas até tem amigos DCnautas.

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