Divulgação/Kinema Citrus/DR Movie
A animação foi recebida com sucesso, mas tem pontos controversos ao redor de seu protagonista. Saiba o porquê
Estreou na última quarta-feira (6) a segunda temporada de The Rising of the Shield Hero. Essa é a continuação da série que foi ao ar durante as temporadas de inverno e primavera do Japão em 2019.
A produção é do estúdio Kinema Citrus, que tem obras como Made in Abyss, Black Bullet e Barakamon no catálogo, e a sequência é feita em colaboração com o estúdio sul-coreano DR Movie. Takao Abo passa a direção para Masato Jinbo, que encabeçou diferentes temporadas da franquia Fate.
A história adapta a light novel de mesmo nome, publicada desde 2013, já com 22 volumes, por alguém que atende pelo pseudônimo feminino Aneko Yusagi, mas que nunca revelou seu gênero oficialmente.
Na trama, acompanhamos Naofumi Iwatani, um autodeclarado otaku, no sentido pejorativo da palavra. Após ajudar o irmão, que teve problemas com a justiça, Naofumi revela ter conquistado o direito de se isolar socialmente. Um de seus hobbies é ler light novels. Quando a grana está curta, ele vai até a biblioteca do bairro e pega emprestado títulos que ainda não conhece.
Numa dessas idas, Naofumi encontra um livro de fantasia medieval que conta a ascensão de um Herói do Escudo. Ao folhear as páginas, uma luz mágica o envolve e transporta para o mundo da história do com outros três rapazes. Por lá, o quarteto é informado que eles são os lendários Heróis Cardinais, invocados para enfrentar uma série de ondas sombrias que aquela terra vem recebendo. Cada um possui uma arma especializada, sendo espada, arco e flecha, lança e, para Naofumi, o escudo.
Dentre as dezenas de novos títulos que estreiam nesta temporada, o retorno do Herói do Escudo é um dos mais aguardados. Shield Hero foi um sucesso doméstico à época de sua exibição. Em 2019, a soma combinada de volumes da light novel e de sua adaptação em mangá ultrapassou a marca de seis milhões de cópias. Mais de um milhão de volumes foram vendidos em apenas dois meses, tamanho foi o desempenho do anime.
Enquanto dentro de casa a recepção foi bastante positiva, internacionalmente o título levantou algumas sobrancelhas de parte do público e da crítica especializada pela maneira como dois temas foram abordados: acusação de estupro e escravidão.
Segue o fio: após entenderem que agora vivem um isekai, os heróis precisam, literalmente, subir de nível, como em um videogame, antes que a próxima onda ocorra. Para tal tarefa, o rei dispõe de um punhado de aventureiros que os acompanharão nessa jornada. O problema é que, em vez de se dividirem igualmente entre os quatro, eles separam-se de acordo com a confiança que têm em cada escolhido. Nessa, Naofumi fica sem ninguém.
Trailer de The Rising of the Shield Hero
Saiba mais sobre o anime que retornou nesta quarta-feira (6)
Contudo, uma das aventureiras, Myne Sophia, que é também uma princesa naquele reino, Malty Melromarc, pede para lhe servir de companhia. Myne o introduz às regras daquele mundo e aparenta ter bastante apreço por Naofumi, que lhe compra uma nova armadura e itens caros. Na primeira noite em uma taverna, ela tenta um envolvimento romântico, algo que ele recusa num primeiro momento, preferindo ir dormir cedo.
Seria o começo de uma bela história para Naofumi, que passou de otaku recluso a herói em um mundo de espada e feitiçaria tão intrigante, com dragões, bruxas, feras, e outras criaturas. Só que, ao acordar, ele percebe que suas roupas e itens foram roubados. Após isso, guardas do reino o capturam e levam à sala do trono, onde Myne, amparada pelo Herói da Lança e acompanhada pelos outros invocados e aventureiros, o acusa de ter tentado estuprá-la na noite anterior.
Naquele reino, que possui um sistema de sociedade matriarcal, o estupro é considerado gravíssimo e é um crime com pena de morte. Mas, como ele é um dos Heróis Cardinais, sua penalidade é ser tratado como pária e não receber qualquer ajuda para aumentar de nível. Sem que ninguém além do protagonista perceba, ao ver o julgamento, Myne sorri em deboche, o que deixa claro que tudo aquilo é uma armação dela.
Ocorre que, naquele reino, e em outros com soberania humana, há uma forte crença na Igreja dos Três Heróis. Essa é uma organização religiosa cuja fé está na figura dos heróis do arco e flecha, espada e lança como salvadores do povo. Em contrapartida, o Herói do Escudo simboliza o puro mal, e é chamado de Diabo do Escudo pelos fiéis.
Naofumi é o protagonista de The Rising of the Shield Hero
Divulgação/Crunchyroll
Tanto o rei dessa nação, Aultcray Melromarc XXXII, quanto Myne compartilham, por motivos distintos, dessa crença. Ele já odiava a figura do Herói do Escudo por problemas antes mesmo de Naofumi ser invocado. Por sua vez, ela quer usar a opinião pública como arma para um golpe de Estado.
Com a reputação arruinada e sem opções viáveis de montar um grupo para subir de nível, Naofumi é abordado por um vendedor de escravos demiumanos em um beco. A raça demiumana mistura características de humano e fera. O portador do escudo decide então comprar Raphtalia, uma criança demiumana tanuki, e escravizá-la através de uma maldição que eletrocuta sua pele caso ela não o obedeça ou minta para ele.
Mesmo que escravizar seja algo visto como imoral naquele lugar, Naofumi faz o mesmo com outra companheira que arruma ao longo da aventura, Filo, uma criatura capaz de alternar sua aparência entre uma ave robusta e uma menininha de asas brancas nas costas. Em dado momento, essa maldição de escravidão pôde ser retirada, mas as personagens decidem refazê-la, pois enxergam Naofumi como um bom mestre e preferem permanecer subjugadas a ter liberdade.
As retratações de um falso estupro através de uma vilã que usa isso para se dar bem e de escravidão sendo praticada pelo protagonista e defendida pelas escravizadas não foram bem recebidas internacionalmente. Mas, no Japão, isso parece não ter sido motivo de controvérsia, segundo um dos produtores do anime, Jinichiro Tamura.
O tema se tornou motivo de debate entre fãs de cultura pop nipônica. Há quem aponte que essas retratações condizem com as regras do universo criado e não devem ser questionadas e criticadas, da mesma forma que há quem entenda que obras de arte espelham a vida desse lado da tela e refletem nelas temas que, sim, devem ser discutidos com seriedade.
O amor dos fãs pela primeira temporada de The Rising of the Shield Hero é justificável por diferentes motivos. A despeito dessas escolhas narrativas questionáveis, o anime conta uma boa história de aventura medieval isekai. Há senso de perigo, imediatismo, são traçados alguns arcos consistentes de personagens e do entorno deles, de modo que as consequências dos atos a cada arco influenciam no todo.
The Rising of the Shield Hero: anime coleciona polêmicas
Cena de The Rising of the Shield Hero
O estúdio Kinema Citrus capricha na animação, com cenários grandiosos e detalhados para afundar o espectador naquele universo. Os personagens têm aparências distintas entre si e suas movimentações agradam em tela, seja nos momentos mais simples, ou nos que exigem um capricho maior.
A mão de diretor do Takao Abo é forte nos momentos necessários. No primeiro episódio, é bem evidente ao traçar audiovisualmente o arco de sonho e corrupção do Naofumi. Quando ele é inicialmente ignorado pelo rei enquanto todos se apresentam, o portador do escudo é o único enquadrado na sombra da sala do trono, os outros estão banhados pelo sol.
Enquanto descobre aquele mundo ao lado de Myne, a fotografia é quente e iluminada, como num conto de fadas, e a trilha sonora é vibrante e positiva. Na taverna, quando Myne lhe oferece vinho e tenta atraí-lo pela primeira vez, essa trilha é deixada de lado, como um aviso do que pode vir a seguir.
Na manhã seguinte, quando acorda, vê que foi roubado e toda a trama armada pela princesa entra em ação, a fotografia se torna fria, fosca, a trilha é tensa. E mesmo os elementos de cena são opressores, com Naofumi despido e o tempo todo cercado por armas na sala do trono, até que, quando é colocado para fora do castelo, o céu, antes ensolarado, está coberto de nuvens de tempestade.
Mas a insatisfação com a maneira como os temas mencionados são retratados também é justificável. E fica ainda mais grave ao perceber que o roteiro perde muito em sutileza ao tentar justificar, ou mesmo celebrar, essas escolhas narrativas. Ele investe tanto em posicionar o Naofumi como correto que sacrifica um pedaço bem grande do que há ao redor dele.
Como diria Jack: vamos por partes. Retratar pessoas ruins, ou com comportamentos condenáveis, como protagonistas ou antagonistas em histórias de ficção não é um problema. Nunca foi, nunca será. Pois é ficção. Na ficção, as coisas que acontecem estão no campo da representação. Elas não “são” de verdade. Também não são um meio de incentivo para o que há nelas seja replicado fora delas. São apenas ferramentas para contar uma história da maneira que os autores desejarem.
Coringa, filme de 2019 dirigido por Todd Phillips, descreve a trajetória social e mental de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) até se tornar o assassino antagonista de histórias do Batman. É um longa-metragem que traz um vilão, que faz coisas terríveis, como protagonista. O Esquadrão Suicida, 2021, de James Gunn, junta vários bandidos condenados em uma missão na qual eles, de certa forma, podem ser retratados como heróis, embora não sejam.
Esses dois filmes são produtos bem melhores que Shield Hero. Possivelmente, por seus roteiros saberem o que querem fazer com tais personagens. Coringa se esforça em construir uma atmosfera onde os eventos ocorridos com o protagonista lapidem sua nova persona. Em O Esquadrão Suicida, a trama nos encaminha ao absurdo, mas o jeito como eles e suas vilanias são apresentados é recheado de cinismo, deboche e charme.
O grupo de protagonistas de The Rising of the Shield Hero
Divulgação/Crunchyroll
O que ocorre em Shield Hero é uma confusão esquisita entre posicionamentos. O que é correto ou não dentro da obra diverge do modo como as coisas ruins praticadas por Naofumi são retratadas. Dá a impressão de que aqueles que contam a história, por mais que saibam que as coisas feitas por ele são ruins dentro do universo construído ali, o tentam vender como correto para o telespectador. E os truques de roteiro para isso empobrecem o anime como um todo.
Fingir um estupro não só é ruim fora da tela, em nossa realidade, por todos os motivos que implicam nisso, mas também é colocado como ruim dentro da trama, na realidade dos personagens. Tanto que, ao fim, a princesa Myne é punida pela rainha, que condena a própria filha à pena de morte, tamanha a gravidade do fato. Até isso acontecer, o que rola ao redor dessa acusação depende de muita suspensão de descrença da parte do espectador.
Para acreditar e comprar a injustiça sofrida por Naofumi, é necessário ignorar que os demais rapazes invocados como heróis, que vieram de realidades parecidas com a dele e deveriam entender como funcionam jogos de poder dentro de histórias de fantasia, sequer cogitaram que algo de estranho poderia estar acontecendo ali. Os outros três, pelo contrário, seguem cegamente o que lhes é contado. Inclusive, um deles replica a ideia da Igreja dos Três Heróis de que Naofumi é um demônio.
Para reforçar o quão injustiçado é Naofumi, o roteiro e a direção repetem a figura de Myne como uma antagonista que mais de uma vez surge em momentos onde o cara do escudo poderia ter alguma mudança em sua situação, mas é atrapalhado por ela. Sempre com uma trilha sonora tensa, sempre com enquadramentos opressores onde ela é reforçada como a vilã que é.
Trailer da segunda temporada de The Rising of the Shield Hero
Novos episódios estão disponíveis na Crunchyroll
E aí entra o ponto da escravidão. Escravagismo é ruim fora e dentro do universo de Shield Hero. O problema é que o roteiro mostra isso de um jeito esquisito: na boca dos antagonistas. Myne usa o fato do Naofumi escravizar Raphtalia, uma coisa errada, como combustível para pintá-lo como o vilão que ela quer que os outros enxerguem nele. E os outros heróis compram essa ideia, mas agora com razão, embora os acontecimentos e o modo com a cena é dirigida indiquem que não, que Naofumi está sendo atacado.
Do outro lado, personagens que são retratadas como mais sábias que os demais ignoram esse fato, ou parabenizam Naofumi: a rainha Mirelia Q Melromarc sequer o questiona por escravizar duas meninas, enquanto a rainha dos filoliais, Fitoria, elogia seu caráter e ainda coloca na criação que ele está dando à Filo a causa da garotinha se fortalecer.
É como se Shield Hero não se decidisse se esses temas são ruins ou não na história contada. O roteiro é manipulador e pobre nesse sentido. Assim como é forçado ao rebaixar os outros personagens para engrandecer Naofumi.
Já de início, os outros três invocados são idênticos em arrogância, pois Naofumi precisa ser visto como humilde. Mais adiante na trama, os três são idênticos em incompetência, pois Naofumi precisa ser o mais habilidoso em todos. Há literalmente uma cena onde os três passam mal numa embarcação, pois Naofumi precisa transmitir a figura do inabalável que não enjoa no mar. Zero sutileza.
Se o primeiro episódio da segunda temporada, já disponível com legendas em português na Crunchyroll, é um prenúncio do que virá mais para frente, a mudança de direção parece não significar uma mudança nos problemas de The Rising of the Shield Hero.
Após um breve período de paz entre uma onda e outra, Naofumi e os demais heróis são convocados pela rainha Mirelia, que os alerta que um novo inimigo acaba de surgir: o espírito de uma tartaruga gigante que pode destruir aquele mundo. O portador do escudo é o único que leva isso a sério, enquanto os outros três se mantêm arrogantes e desinteressados, novamente opostos ao protagonista, vazios em desenvolvimento.
O tema da escravidão também é reprisado e permanece sem autocrítica. Uma nova personagem entra para o grupo de Naofumi. Como ela é muito fraca e não consegue subir de nível tão bem quanto as demais, Raphtalia sugere que ela se torne escrava, e ela aceita de maneira empolgada.
Mas a parte técnica do estúdio Kinema Citrus, agora em parceria com o DR Movie, também segue igual. Então os cenários detalhados estão lá, as movimentações fluidas dos personagens, que funcionam em momentos pausados e em batalhas de grande velocidade, a trilha sonora caprichada e por aí vai.
Igor Lunei
Igor Lunei é jornalista e escreve na Tangerina sobre cultura pop asiática, tema que também pesquisa. Do Rio de Janeiro, é fã de cinema, música, gibis e animes. Tem textos também no JBox.
Ver mais conteúdos de Igor LuneiTangerina é um lugar aberto para troca de ideias. Por isso, pra gente é super importante que os comentários sejam respeitosos. Comentários caluniosos, difamatórios, preconceituosos, ofensivos, agressivos, com palavrões, que incitam a violência, discurso de ódio ou contenham links vão ser deletados.
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