Margareth Menezes e presidente Lula
AVALIAÇÃO

Para artistas, governo Lula é alívio depois de quatro anos sombrios

Em entrevista à Tangerina, atrizes e diretor avaliam momento atual da cultura brasileira e falam sobre expectativas do governo Lula

Ricardo Stuckert

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De 2019 a 2022, a cultura brasileira passou por um verdadeiro período de escuridão. Importante marco do processo de transição democrática no Brasil, o ministério da Cultura foi extinto no primeiro dia de governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, sendo incorporado ao ministério da Cidadania e rebaixado à secretaria especial.

A palavra “desmonte” foi amplamente associada à cultura no Brasil, que assistiu à maneira como a arte foi cada vez mais desvalorizada no país, jogada para escanteio e deixada ao léu. Desde sua candidatura, nos idos de 2018, Bolsonaro fez do setor cultural um grande alvo de seus discursos e o acertou em cheio quando assumiu a presidência.

Aqueles que fazem arte sentiram na pele o peso e os efeitos da ascensão da extrema-direita ao poder, seja direta ou indiretamente. O fim do ministério da Cultura, a tentativa de substituir o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) por uma superintendência, o descaso com o impacto da pandemia de Covid-19 no setor, o etnocentrismo com relação aos povos indígenas e o total esvaziamento das políticas culturais são apenas alguns dos movimentos articulados nos últimos anos que conseguiram tornar o simples ato de fazer arte cada vez mais desafiador no país.

Poucos foram os membros da classe artística que não ficaram incrédulos, incomodados e emocionalmente esgotados ao assistir ao naufrágio cultural brasileiro. “A vida do artista no Brasil já é muito sacrificada, porque as leis ajudam na produção dos espetáculos, filmes e séries. Vi muitos colegas passando por dificuldades, foi um período sombrio e triste”, relembra Gloria Pires durante entrevista à Tangerina sobre seu mais recente filme, Desapega!.

O fim do incentivo à cultura

A famosa lei Rouanet, instituída em 1991, tem como nome oficial Lei Federal de Incentivo à Cultura. Ela é um meio de facilitar que trabalhadores do setor artístico e cultural realizem peças de teatro, filmes, espetáculos de música, dança, shows, lançamentos de livros, oficinas e tantos outros eventos de cultura no país.

A lei permite que o artista busque patrocínio e recursos financeiros com empresas privadas para o seu projeto, e o valor arrecadado ficará isento do Imposto de Renda dos envolvidos. No governo Bolsonaro, porém, a captação de recursos caiu em 50%, os cachês foram cortados em 93%, e o teto de arrecadação ficou cada vez mais apertado.

“Eu tive um projeto que não foi adiante, e eu lamento muitíssimo. Ele juntava educação, arte e saúde, com o apoio de um pediatra, sobre criação de filhos. Iria circular por meio de incentivo federal. Às vezes, as pessoas falam: ‘Não foi tão [grave] assim, não houve um desmonte’. Mas houve, sim, um desmonte. O ministério foi destituído, foram criados diversos empecilhos para que projetos acontecessem”, relembra a atriz e comediante Flávia Reis. “A cultura parou nesses quatro anos. Porque a produção cultural não é só teatro e cinema, tem eventos, bandas de coreto em pracinhas, é uma dimensão tão gigantesca do que movimenta financeiramente e artisticamente no Brasil, que se, compararmos como foram nesses anos, é um desespero e um desperdício.”

Em diversos de seus discursos, Jair Bolsonaro fazia ataques diretos à cultura. Em levantamento realizado pelo Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística), o país teve 269 casos de censura registrados durante os quatro anos de governo, além de ter sofrido com cortes bruscos na Ancine (Agência Nacional do Cinema) e ainda ter contribuído com o fim de quase 800 bibliotecas públicas do Brasil, de acordo com o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas.

Para o cineasta Rodrigo França, que dirigiu o filme Barba, Cabelo & Bigode (2022) da Netflix, foi um dos períodos mais difíceis que os artistas tiveram que atravessar no Brasil. “Eu nunca vi, ao longo dos meus 44 anos, uma gestão tão perversa. Eu acho que a palavra é essa, perversa, e criminosa, para não ficar só na relação sociopata. Começar a colocar o povo contra artistas, técnicos, educadores e cientistas é uma perversidade. É mexer com uma estrutura para que se possa fazer o que quiser”, pontua.

Retomando a esperança

Com a eleição de Lula em outubro de 2022, uma onda de esperança voltou a reinar sobre a arte. “Automaticamente parece que a gente voltou a respirar”, desabafa Flávia Reis. “Pelo menos voltamos a ter perspectiva –ainda que não estejamos com as leis funcionando, a perspectiva de reescrever projetos, de colocar na lei, de saber que você vai poder circular com seu projeto, vai poder contar com uma ficha técnica. Porque todo mundo teve que enxugar tudo. Na pandemia, nosso único recurso era a internet e as redes sociais e, quando tudo voltou, não teve nenhum incentivo maciço para bancar os artistas para fazer os espetáculos e as manifestações artísticas voltarem. Foram muitos artistas que passaram aperto.”

Lula restaurou o ministério da Cultura, que terá orçamento recorde de mais de R$ 10 bilhões só em 2023, contemplando as leis Paulo Gustavo, Rouanet e Condecine, e ainda promete desfazer as mudanças instauradas por Jair Bolsonaro.

Como ministra da Cultura, Lula nomeou Margareth Menezes, cantora e atriz preta, indicada ao Grammy, e considerada pelo jornal Los Angeles Times a “Aretha Franklin brasileira”. “Eu tenho muita esperança, muita mesmo”, acrescenta Rodrigo França. “Não vai ser fácil, porque o ministério da Cultura terá que ser quase que reconstruído do zero, mas viveremos anos mais tranquilos do que vivemos. Chegamos praticamente ao fundo do poço, e agora vamos nos reconstruindo.”

Para Flávia Reis, mestre na arte do riso, até a comédia pode ser feita de uma maneira mais leve daqui para frente. “É um alívio vislumbrar as possibilidades, saber que a gente vai poder voltar a fazer espetáculos, que a gente vai ter como inscrever um projeto para ser patrocinado”, celebrou. “É uma visão de futuro da produção artística no Brasil de novo que a gente não tinha. Faltava muito incentivo. Tivemos várias produções brasileiras no cinema que não foram para frente, justamente por falta de incentivo. Agora, com a Margareth Menezes, a gente já tem um outro olhar sobre tudo, outra perspectiva, pensa que não teremos perseguição a nenhum segmento.”

Desafios daqui para frente

“Quem tem medo da cultura é quem não gosta do povo e não gosta de liberdade. É quem não gosta de democracia, e nenhuma nação do mundo será uma verdadeira nação se não tiver liberdade cultural. O Brasil vai recuperar a sua cultura”, declarou Luiz Inácio Lula da Silva em um de seus primeiros discursos após a confirmação do resultado das eleições.

Transformar a cultura em um embate ideológico acabou acendendo alertas e deixando um verdadeiro desafio para o atual governo. Sem ministério propriamente dito, a secretaria especial de Cultura sofreu com cortes de orçamento e alta rotatividade, evidenciando a falta de compromisso com a arte brasileira.

A destruição de patrimônio cultural e histórico promovida pela onda de terroristas que invadiram o Palácio do Planalto no começo do ano provou como a arte foi desvalorizada e o longo caminho que ainda precisa ser percorrido.

Aos poucos, o ministério busca tornar-se representativo, destravar e otimizar a distribuição de recursos, além de lançar um olhar de acolhimento a artistas que não se tinha nos últimos quatro anos de gestão.

“Tudo ficou tão represado nesses quatro anos que eu acho que, agora, as pessoas estão com os ânimos renovados. Essa coisa da esperança, de ver uma luz no fim do túnel, ter de volta um ministério da Cultura e um governo que valoriza a importância da cultura me enche de esperança. Estou muito animada com o que está por vir”, finaliza Gloria Pires.

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