Micheli Machado
ENTREVISTA

Micheli Machado desabafa sobre desafios de uma mulher preta no humor

Atriz e comediante, Micheli Machado se abre sobre racismo, machismo e os desafios que enfrenta em uma carreira de mais de 30 anos

Divulgação/Jaime Leme

Giulianna Muneratto
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Pioneira na comédia stand up no Brasil, Micheli Machado consegue tirar um sorriso fácil de qualquer um. A atriz e humorista, que está prestes a estrear na novela Todas as Flores, que João Emanuel Carneiro prepara para o Globoplay, tem um jeito muito leve de levar a vida, mas uma força inimaginável que carregou consigo durante toda a carreira. Em entrevista à Tangerina, ela desabafa sobre os desafios que enfrentou –e ainda enfrenta– como mulher preta no humor e na teledramaturgia.

Nascida na periferia de São Paulo, Micheli caiu na vida artística sem querer. Aos oito anos, entrou no mundo dos comerciais ao acaso, após acompanhar sua vizinha em uma visita a uma agência de modelos e conquistar a equipe com seu carisma.

“Sem saber que era uma agência, eu fiz um monte de coisa, tirei até foto. No dia seguinte ligaram para a minha mãe, que disse: ‘Não, minha filha nunca foi, nunca levei minha filha em nada de modelo, como é que a agência de modelo está me ligando? Eu sou pobre, mas vocês não vão me dar o golpe’”, relembra, aos risos.

Seu primeiro comercial de TV foi da Barbie –boneca com a qual nunca tinha brincado até então. “Imagina eu, uma criança favelada, vendo uma Barbie original pela primeira vez. Eu fiquei maravilhada”, conta. “Eu brinquei tão verdadeiramente com aquela Barbie que passei no teste e depois fui contratada para fazer praticamente todos os comerciais da marca.” 

Aos 12 anos, ganhou ainda mais visibilidade e se tornou uma angelicat –para quem não sabe ou não se lembra, o nome se refere às assistentes de palco da apresentadora Angélica na década de 1990. Ou seja, o mesmo que as paquitas representavam para Xuxa.

Micheli guarda boas recordações da época. “Era como se fosse uma família. Mantemos contato até hoje, é um amor muito grande que nós criamos”, diz. Com o fim da atração, ela investiu na carreira de atriz e chegou a fazer participações em programas como A Turma do Didi (1998-2010), Zorra Total (1999-2015) e Casseta e Planeta (1986-2010). 

Foi por meio da amizade com a também ex-angelicat Geovanna Tominaga que Micheli Machado conheceu seu marido, o ator e humorista Robson Nunes. Os dois estão juntos há quase 20 anos, e ele foi um dos grandes incentivadores para que a atriz se dedicasse à comédia. “O humor sempre foi meu refúgio, mas eu não me enxergava como comediante”, revela.

O humor como válvula de escape

No começo da carreira, além de não acreditar que tinha aptidão para a comédia, Micheli buscava se expressar por uma arte mais séria, para mostrar maturidade em seu trabalho. 

“Eu sempre queria fazer um drama. Queria mostrar profundidade –a gente tem aquela coisa de ‘só quem faz drama é bom ator’, ‘só quem faz drama tem profundidade’, enfim”, conta. “Na verdade, depois que eu cresci, entendi que isso faz parte dessa indústria, que faz com que a comédia seja sempre deixada de lado. Ninguém leva o filme de humor e o comediante a sério. Inferiorizam muito. Isso acabou ficando dentro de mim, sem eu perceber.”

Foi após comprar o primeiro comedy club do Brasil com o marido e receber os primeiros shows de stand up na casa que ela cogitou entrar para o ramo. “Eu achava que eu não sabia fazer comédia. Acreditava que era aquela pessoa engraçadinha, na roda dos amigos, mas não em cima do palco”, confessa. 

Micheli começou escrevendo piadas para outros colegas comediantes e precisou de um empurrãozinho do marido para se arriscar como humorista. “O Robson chegou para mim e falou assim: ‘Quando é que você vai parar de ser cuzona e deixar de escrever para todo mundo e escrever para você mesma?’”.

Após o incentivo, nasceu o Humor de Salto Alto, o primeiro grupo de comédia formado exclusivamente por mulheres do Brasil, que buscava quebrar barreiras em um ambiente dominado por homens. “Nós chamávamos um homem para ser o mestre de cerimônias, mas na verdade fazíamos uma fritada com ele. É como se fosse a virada do jogo, do tipo ‘você não faz piadas com a gente o tempo inteiro? Chegou a nossa vez’.”

Por ser uma mulher que fazia piada com temas mais polêmicos e subia bem vestida no palco, em um meio que incentivava que mulheres se caracterizassem para ficarem engraçadas, Micheli Machado enfrentou situações machistas recorrentemente.

“Muitos amigos falavam: ‘Micheli, não se arrume. Você está subindo no palco bonita demais, as mulheres vão ficar achando que você quer dar em cima dos machos delas. A mulher feia e desarrumada é sempre mais engraçada’”, expõe.

“Eu queria provar para todos que, independentemente de eu ser mulher, eu posso falar do que quiser, porque o que importa são as piadas boas. Se você tem uma piada que é boa e que é engraçada, as pessoas vão rir.”

Micheli fez história na comédia e se tornou a primeira mulher preta brasileira com um especial na Netflix. Ela tem um episódio próprio em Lugar de Mulher (2019), um especial de comédia stand up que divide com Bruna Louise, Cintia Rosini e Carol Zoccoli. 

Por trás do largo sorriso, Micheli sabe que carrega uma importância no trabalho que cumpre atualmente. Ao final de seu show, ela faz questão de deixar uma mensagem para ecoar na mente do público: “O meu lugar é onde eu quiser estar –lojas caras, restaurantes caros, ou em 187 países pela Netflix”. 

Enfrentando o racismo

Como mulher preta que cresceu na periferia, Micheli Machado teve que se fortalecer para enfrentar situações de preconceito, que estão presentes no seu dia a dia até hoje. “Eu e o Robson viemos da periferia e, graças ao nosso trabalho, conseguimos ganhar dinheiro e proporcionar uma vida melhor às nossas famílias”, conta. “Hoje em dia, moramos em um bairro que é considerado o metro quadrado mais caro de São Paulo, em um condomínio de três torres, em que somos a única família preta.”

A comediante acredita que ainda há muito a ser feito para combater o racismo não somente no Brasil, mas em todo o mundo. “As pessoas não querem deixar os pretos chegarem ao poder. Tem muito textinho bonito na internet sobre igualdade social, mas aí quando você conhece a pessoa, ela fala tão bonito, mas não faz”, desabafa.  

A atriz fala sobre a necessidade de ser uma força motriz nessa guerra contra o preconceito. “O textão no Instagram incentiva e empodera, mas eu preciso mostrar para a pessoa que ela pode também servir como um exemplo de mudança, ela vai se achar muito mais capaz.”

Os amigos brincam que ela e Robson estão morando em um “bairro de branco”, mas a atriz acredita que o primeiro passo é, de fato, ocupar esses espaços para que não sejam mais conhecidos dessa forma. “Eles têm que entender que um bairro rico é de preto também”, explica. “Nós vamos fazer pagode aqui nessa churrasqueira, vamos atrás dos nossos amigos pretos e quem quiser chegar, que chegue, e quem quiser fazer cara feia, que faça.”

O preconceito velado é percebido pela atriz também quando ela sai com sua família para espaços públicos frequentados por pessoas de alto poder aquisitivo. “Nós fomos jantar em um restaurante aqui em São Paulo que é supercaro e não tinha nenhum preto. Todas as vezes que chegamos nesses espaços as pessoas [ficam nos olhando e pensando]: ‘Nossa, será que eles vão ter dinheiro para pagar a conta?’. É 2022 e isso segue acontecendo.”

Criando uma mulher empoderada

Do casamento com Robson Nunes, nasceu a pequena Morena, atualmente com dez anos. Micheli conta que cria a menina para se tornar uma mulher convicta de suas opiniões e com uma boa autoestima, para que ela possa se defender do que aparecer pela frente. 

Robson Nunes, Micheli Machado e a filha Morena

Robson Nunes, Micheli Machado e a filha Morena

Divulgação/Evva Comunicação

Eu tô criando uma menina preta, né? Tinham mulheres que iam em casa falar para minha mãe: ‘Você tá louca, você tá dando uma esperança que essa menina não merece ter. Essa menina é preta, feia, pobre. Nunca ela vai ser alguma coisa’. Eu cresci ouvindo isso. Essas vozes ecoam até hoje, mesmo com anos de terapia, eu cresci com a autoestima toda cagada”, explica.

Eu não quero que minha filha passe por isso. Quero que ela tenha consciência da preta linda que ela é. Não quero que ela passe anos se achando horrorosa, se colocando defeito, e vendo uma imagem distorcida no espelho como eu vi.”

Micheli tem um ritual matinal com Morena e fala dele com tanta emoção que chega a servir de inspiração na busca de um propósito. “Todos os dias pela manhã eu a acordo, dou bom dia e falo: ‘Você é maravilhosa, você sabe disso, né? Você é incrível, você é uma mulher perfeita’”, compartilha. 

Ela brinca que em alguns dias a filha responde com sono e irritada, mas ainda assim a artista faz questão de lembrá-la diariamente que ela tem uma vida inteira de conquistas pela frente. “Eu falo: ‘A gente nasceu pra quê, filha?’, e ela responde: ‘Pra ser feliz’. Nada que tire sua felicidade merece você, nada. Você merece ser feliz.” 

Desde a barriga, Micheli coloca a filha em contato com sua ancestralidade –por meio da música e sempre apresentando grandes personalidades pretas à garota, para que ela possa ter espelhos de sucesso. “É para ela saber que, apesar do que é nos oferecido e falado, nós somos incríveis, temos uma cultura incrível e temos que nos orgulhar de nossos ancestrais e de toda a história que deixaram para a gente. Só temos a oportunidade de ser quem somos porque muitas pessoas lutaram e morreram antes de nós.” 

Apresentar para Morena mulheres pretas cientistas, artistas, autoras e cantoras tem surtido efeito. Em um trabalho de escola sobre personalidades históricas importantes, ela fez questão de solicitar à professora que incluísse mulheres pretas para se sentir representada. “É importante você fazer com que a criança já cresça com orgulho da sua ancestralidade. É uma questão de parar e pensar: ‘Não, espera aí, vocês estão achando que só vocês brancos fizeram coisas? Não, a gente também!’.” 

Representatividade nas telas

Micheli também se torna um exemplo de sucesso para a filha e para tantas outras pessoas que se inspiram em seu trabalho. A atriz vai fazer parte da novela Todas as Flores, de João Emanuel Carneiro, que estreia em outubro exclusivamente no Globoplay. Micheli interpretará Chininha, uma mulher pobre, que mora na Gamboa no Rio de Janeiro, e que sonha em ser atriz. 

“Toda vez que ela sai de casa, ela sai arrumada e fica olhando para os lados, porque pensa: ‘Será que hoje não é minha vez? Já que Gisele foi descoberta assim…’”, brinca. 

A personagem integra o núcleo de comédia ao lado de nomes como Zezeh Barbosa, Mumuzinho, Xande de Pilares, Thalita Carauta e Jhona Burjack. “Toda vez que eu falo do meu núcleo eu tenho vontade de chorar –é um núcleo, assim, de agradecer de joelhos”, comemora. 

Essa é a segunda vez em que a comediante atua em novelas da Rede Globo. A primeira foi em Quanto Mais Vida, Melhor! (2021), na qual interpretou Jandira. Agora, ela conta que está realizando um sonho ao trabalhar com o escritor de A Favorita (2008) e Avenida Brasil (2012).

“Eu me senti grata só de ter recebido o convite para o teste. Só de saber que eu fui considerada capaz de estar num elenco de uma novela de João Emanuel, já pulava de alegria”, brinca. 

Ao integrar os núcleos principais de grandes projetos da Globo e do Globoplay e ter seu episódio exclusivo de comédia em um projeto da Netflix, Micheli acredita que vai inspirar muitas meninas e mulheres pretas a seguirem um caminho de sucesso.

“Eu quero mostrar que, apesar do que falam para nós, temos que ouvir principalmente o nosso coração. Se você não se achar capaz, ninguém vai te achar”, finaliza.

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QUEM FEZ

Giulianna Muneratto

Jornalista pela Faculdade Cásper Líbero. Adora um filme clichê, música pop e sonhava em ser cantora de cruzeiro, mas não tem talento pra isso.

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