João Miguel Júnior/TV Globo
Com pouca diversidade e criticada por 'palestrinhas, novela da Globo é sequestrada por direita nas redes
Juma (Alanis Guillen) ainda nem tinha documentos, muito menos o título de eleitor, antes de parte da direita avançar sobre Pantanal. Até então uma das adversárias de Jair Bolsonaro, a Globo ganhou elogios (ainda que tortos) até de apoiadores do presidente. O machismo na boca de José Leôncio (Marcos Palmeira) e a falta de diversidade soaram como um berrante para o gado –nem tão atento assim aos sinais da novela das nove da Globo.
A filha de Maria Marruá (Juliana Paes) quase passou a ser uma das musas do armamentismo de uma hora para outra. O ator Thiago Gagliasso, rompido por questões políticas com o irmão Bruno Gagliasso, quis se apoderar da espingarda da jovem.
“A Globo passa o dia (quase) inteiro fazendo campanha contra o desarmamento, mas de 21h até 22h29 (seu horário nobre), sua principal novela mostra uma menina que protege sua propriedade e só se mantém viva por causa da arma que tem em casa”, tergiversou ele.
Jove (Jesuita Barbosa), por sua vez, mudou tanto de espectro político nas redes que quase poderia fazer parte do centrão. Alguns perfis mais à esquerda insistiram que o fotógrafo utilizava os métodos de Paulo Freire (1921-1997) para alfabetizar Juma.
Os influenciadores mais à direita insistiram que o rapaz era justamente oposto ao educador por utilizar uma cartilha –rechaçada pelo intelectual– para ensinar o bê-a-bá.
Apesar de a polarização atingir até o remake, Benedito Ruy Barbosa está longe de ser um homem de fáceis classificações. Em uma análise mais fisiológica, o autor tem ideias claramente mais próximas a uma esquerda mais clássica. Não à toa, ele abordou importantes temas sociais como a reforma agrária em Meu Pedacinho de Chão (1971) ou o MST (Movimento dos Sem-Terra) em O Rei do Gado (1996).
Um dos pontos centrais é que Pantanal foi escrita há três décadas, em uma época em que direita e esquerda se encontravam em uma configuração bem distinta de 2022. As ideias do novelista têm um tom de vermelho à italiana, a exemplo de alguns companheiros de seu tempo como Italo Calvino (1923-1985).
As histórias de Ruy Barbosa trazem no DNA a ideia de que a luta por justiça social em si só é capaz de reparar todos os erros. E, nesse balaio, inclui-se o racismo, o machismo e toda uma série de questões identitárias que até já existiam, mas ainda não estavam em discussão na TV.
Não à toa, o autor foi capaz de ter escrito uma das cenas antológicas da televisão brasileira: a que o senador Caxias (Claudio Vereza) faz um discurso sobre os sem-terra para um plenário. E, ao mesmo tempo, ter dito que jamais escreveria histórias sobre gays durante o lançamento de Velho Chico (2016).
Bruno Luperi fez várias atualizações no texto do avô para tornar o remake mais palatável para a realidade atual. Entre elas, Nayara (Victoria Rossetti) e Madeleine (Karine Teles) se tornaram influenciadoras digitais. Ele, porém, também manteve a história praticamente inalterada, com trechos exatamente iguais aos da primeira versão.
Um dos principais desafios dele é manter a essência de Pantanal e, ao mesmo tempo, atender demandas cada vez mais frequentes e necessárias de representatividade. Ele trouxe mais atores negros, suavizou tramas machistas e tirou o alívio cômico de um dos poucos, senão o único personagem LGBTQIA+ –Zaquieu (Silvero Pereira).
Luperi, de um lado, soube abraçar que questões identitárias se tornaram centrais para se entender as esquerdas hoje. Ele, entretanto, não fez mudanças tão substanciais a ponto de esses acenos não serem vistos como “palestrinhas”.
As falas de Guta (Julia Dalavia) são mais rejeitadas do que absorvidas pelo público, assim como as constantes lições de moral que Jove dá nos peões. Elas destoam muitas vezes do restante do folhetim, que tem a naturalidade como palavra-chave.
O neto de Ruy Barbosa, no entanto, dá um baile em quem tenta se apossar de Pantanal como uma história à direita.
Ele recusa didatismo ao abordar pontos importantes: os conflitos por terra e a teologia da libertação, nas figuras de Gil (Enrique Diaz) e Maria Marruá; e as críticas à Ditadura Militar (1964-1985), no livro de Elio Gaspari que sempre acompanha a personagem de Julia Dalavia.
Daniel Farad
Repórter. Além do Notícias da TV, também se juntou ao Tangerina para combater a mesmice e o escorbuto. Escreve do Rio de Janeiro, onde se sente eternamente em uma novela do Manoel Carlos. Aqui, porém, a gente fala mexerica. Fale com o Daniel: vilela@tangerina.news
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