MÚSICA

Karina Zonzini, intérprete de Libras

Divulgação

Amplificadoras

A mulher que traduz a música pra quem não pode ouvir

Karina Zonzini, intérprete de Libras, discorre sobre a própria trajetória, desafios e o poder de promover acessibilidade na cultura

Nicolle Cabral
Nicolle Cabral

Uma câmera, uma caixa de som e um fone de ouvido são os equipamentos básicos para que o trabalho de Karina Zonzini Bueno aconteça. Uma parede verde, como a que estava posicionada atrás dela durante a entrevista à Tangerina, ainda auxilia as gravações, especialmente de videoaulas —uma demanda que surgiu com o avanço da pandemia da Covid-19. As lives de shows também fazem uso do mesmo cenário. 

Com uma estrutura tão simples, Karina, intérprete de libras, alcança milhões de brasileiros que não podem ouvir. Entre turnês pelo Brasil, shows e peças de teatro, ela costura a sonoridade que nos envolve em uma única vibração: a música.

“Sempre brinco com os meus alunos no primeiro dia de aula: ‘Alguém aqui queria ser médico quando era pequeno? Advogado? Bailarino?’ A maioria levanta a mão. ‘Mas e intérprete de libras?’ Ninguém levanta. ‘Pois é, eu também não. Pra gente ver como são as coisas, né?'”.

Karina, na verdade, sonhava ser uma das integrantes d’As Frenéticas, porque todas usavam botas bonitas e coloridas. Trabalhar para o apresentador Chacrinha também era uma opção. A vida acabou lhe dando outros rumos, mas, durante a pandemia, ela teve “o privilégio”, como avalia, de fazer uma peça com As Frenéticas. “De uma maneira ou de outra, não deixou de ser uma realização pessoal”.

A intérprete renunciou ao sonho de ocupar apenas um palco para subir em vários e, assim, transformar a vida (e a música) para milhares de pessoas surdas.

O que é Libras?

Em território nacional, Libras é a sigla para língua brasileira de sinais, composta por um extenso repertório de gestos para atender aos surdos. Segundo a Agência Senado, em 2002, foi implantada pela primeira vez a Lei 10.436, que oficializa Libras como estado de comunicação e expressão. Essa ação, portanto, obriga escolas, faculdades, repartições do governo e empresas que prestam serviços públicos a providenciar intérpretes para atender a essa parcela da sociedade. 

No Brasil, essa fatia social representa 5% da população brasileira —percentual que corresponde a cerca de 10 milhões de cidadãos, dos quais 2,7 milhões possuem surdez profunda. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE).

Mãos interpretam linguagem de sinais

A História da Língua Brasileira de Sinais

O vídeo aponta como surgiu Libras

A própria oferta e procura

A necessidade de Karina para se especializar na área veio após o casamento com o ex-marido, que é surdo. “Há 14 anos, não existia espetáculos de entretenimentos que tivessem acessibilidade, a não ser os religiosos. O primeiro show que vimos juntos foi o do Nando Reis, e não tinha intérprete. Não dava para ele saber o que estava acontecendo. Então, foi ali que me despertou [a vontade de me especializar]”.

Além da formação em Pedagogia pela Universidade Paulista (UNIP), em 2014, ela fez curso de Libras e prestou a prova de proficiência, que a qualificou para atuar em todo o território nacional como intérprete. Uma especialização em Educação Inclusiva Especial e Políticas da Educação também foi bem-vinda no roteiro de estudos.

Quando passou a emular uma comunicação para além da própria casa —o filho, de 23 anos, também é fluente em Libras—, Karina fez sua estreia como intérprete na peça Afrobege, do comediante Robson Nunes. “Procurei o produtor, porque tinha uns amigos que queriam ver a peça, mas ele disse que não tinha intérpretes. Me ofereci”, relembra.

“Foi mais por oportunidade. Eu nem sabia quanto cobrava [para ser intérprete], sabe? Na época, ele me ofereceu um cachê e eu achei ‘uau’, né?. No fim, deu super certo. Um produtor já começou a contar para o outro e estou nessa até hoje”, comemora.

Do teatro ao maior bloco do mundo

Aos 42 anos, ela coleciona participações nos shows de Caetano Veloso, Lenine, Gal Costa e em blocos de carnaval como o Bangalafumenga, que acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo. Além deles, Karina também marcou presença em um dos blocos de rua mais tradicionais do país, o Galo da Madrugada. O evento, que acontece no Recife (PE), arrasta mais de 2 milhões de pessoas anualmente.

“Eu não sabia se eu chorava ou se interpretava quando vi aquela multidão. O mais legal é quando você vê surdos lá embaixo sinalizando para você. Aí a gente percebe que a arte tem que ser para todos e como ela tem esse poder de agregar”, afirma.

A demanda acabou ficando grande só para uma pessoa. Por isso, Karina decidiu fundar uma empresa de intérpretes, onde atua com 18 pessoas fixas e freelancers ao redor do Brasil. Todos a postos para cair na rotina dinâmica —e agitada—do intérprete de libras. A empreendedora também é criadora da ONG Surdo Mundo. “Temos freelas em Brasília, Belo Horizonte, no Nordeste… Fizemos trabalhos até com intérpretes da Colômbia e dos Estados Unidos”, lista, com empolgação.

Entre razões e emoções

Seja de frente para uma multidão que segue o trio elétrico ou diante da calma plateia sentada em um teatro, Karina garante: “Não vejo diferença. Por conta da minha experiência pessoal e profissional, quando chega [a informação], já sai”.

Ela brinca, contudo, que precisa se controlar na hora de interpretar uma música que gosta muito. “Já tive que interpretar de olhos fechados”, explica. “Você só não pode se entregar muito —num bom sentido [risos]— se não, você acaba se atrapalhando na tradução”. Principalmente se alguma das atrações for internacional. Afinal, nesse caso, pode ser necessária até uma tripla tradução: do inglês para o português, do português para libras.

Além da habilidade de captar rapidamente a informação, o canto ou a performance dos palcos, Karina também pontua que, às vezes, é preciso lidar com o ego dos contratantes e artistas da indústria do entretenimento. “Já me disseram: ‘Interpreta de uma forma mais comedida’, ‘Vocês fazem muitas caras e bocas’. A gente [intérpretes] não está ali para chamar atenção. Muito pelo contrário, nós temos o nosso próprio trabalho. Nos comunicamos com a expressão facial e corporal. Nada adianta comunicar um sinal de triste com um sorriso no rosto”.

Para quem tem uma fala oral ativa, o gesticular acaba sendo mais adicional do que primordial. Em um dos trabalhos fixos de Karina, como o projeto Reggae Little Lions, banda que canta reggae para crianças, ela explica a importância de criar cenários na hora de interpretar as canções em libras.

“Você monta para o surdo, através da sua sinalização, um cenário visual, como aquele que quem tem fala oral automaticamente já monta na cabeça”, explica. Com o tempo, segue Karina, a comunicação em libras ganha a personalidade de quem interpreta. “Você tira a sua visão de mundo da bagagem para poder transmitir a mensagem. Então, você acaba deixando um carimbo seu. Igual a uma aula de interpretação de texto. Você vai ler de um jeito diferente da coleguinha que estudou contigo desde pequena”.

Karina Zonzini na peça A Bela e a Fera

Karina Zonzini, intérprete de Libras, na peça A Bela e a Fera

Arquivo Pessoal/Karina Zonzini

Erros ainda primários

Há 10 mais de anos no mercado, Karina pontua cenários que evoluíram, como a obrigatoriedade de intérpretes em alguns eventos. Para ela, porém, as deficiências do ramo ainda seguem primárias: situações de desrespeito, falta da estrutura e rotina exaustiva. “Para a gente ter condições de trabalhar minimamente bem, precisam oferecer água, um lugar bacana, que você pelo menos ouça o que está sendo dito. Caso contrário, não vai ter como você repassar a informação correta”.

A empreendedora diz que viveu situações em que se sentiu desrespeitada e “precisou falar mais alto”, para poder ser ouvida. “Se você vai a um evento com mais de uma hora de duração, o correto é que você tenha um par para revezar a cada 20 minutos, porque é uma exaustão mental e física muito grande”, narra.

A intérprete também enfatiza a dificuldade de dividir os mesmo espaços que os artistas têm nos palcos. Afinal, assim como existe espaço específico para o tecladista ou o baixista, por exemplo, o local reservado para os intérpretes também deveria ser algo primordial na hora de montar as estruturas dos eventos. Algo que não acontece com a frequência necessária.

“Às vezes, pedem para você chegar com duas horas de antecedência até resolver tudo. Aí chega alguém dizendo que nem pensou onde o ‘pessoal de libras’ vai ficar. Tem que oferecer uma estrutura, né?”, cobra ela.

Embora a rotina seja volátil e o mercado ainda enfrente grande dificuldades, Karina assume postura positiva: “Se existimos, alguém precisou abrir esse espaço. O que já é ótimo, já que vivemos em um Brasil com mais de 2 milhões de surdos”.

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Antes de ser repórter da Tangerina, Nicolle Cabral passou por Rolling Stone, Revista Noize e Monkeybuzz. Nas horas vagas, banca a masterchef para os amigos, testa maquiagens e cantarola hits do TikTok.

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