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Experimente pesquisar o termo “afrobeat” no buscador do YouTube. Quem espera cair direto em um vídeo do mestre nigeriano Fela Kuti pode se frustrar ou se surpreender, já que o resultado da busca trará diversas playlists de afrobeats, com “s”. E tem afrobeats para todas as horas, viu? “Vibes Mix”, “Party”, “Best of” e “Chill” são algumas das tags que delimitam as curadorias de cada lista.
Afrobeats Mix
Ouça playlist que conta com WizKid (foto), Burna Boy, Fireboy DML e mais
É, os criadores de playlists do gênero aprenderam bem a arte do SEO. Mais de dez vídeos depois é que encontramos um representante do afrobeat sem “s”: a incrível apresentação da big band Kokoroko no canal Sofar Sounds.
Kokoroko
Veja a apresentação da banda no Sofar Sounds
No momento em que este texto é escrito, a faixa Wait For U, do rapper Future com participações de Drake e Tems, está no topo da lista da Billboard Hot 100. A cantora Tems é nigeriana e faz parte do time de artistas conterrâneos responsáveis por fincar a bandeira do afrobeats no globo, ao lado de Burna Boy —destaque no último Billboard Music Awards—, WizKid, Fireboy DML, CKay, Tiwa Savage, Yemi Alade, Rema e outros.
A Nigéria é conhecida como “African Giant” por seu destaque econômico no continente, já que reveza com o Egito os dois primeiros lugares no ranking dos países mais economicamente ricos da África. É dela, também, a maior indústria musical da África, tendo na cidade de Lagos seu grande hub criativo.
Se você não leu no ritmo de “qual é a diferença entre o charme e o funk?”, por favor, volte duas casas.
Não há exatamente um consenso sobre a relação entre afrobeat e afrobeats para além do nome. O terreno mais seguro é reconhecer o berço cultural e os diálogos estéticos e políticos que os conectam, mas não devem ser entendidos enquanto extensões um do outro.
Entretanto, cabe contextualizar como o termo afrobeat, no singular, apareceu lá pela década de 1970. Cunhado pelo musicista e superstar nigeriano Fela Kuti (1938-1997), ele dá nome ao gênero musical criado ao lado de Tony Allen (1940-2020), seu baterista nos tempos da big band África 70.
A própria história de Fela e desse som mostram o quanto o diálogo além das fronteiras da música preta é determinante para mudar os rumos da música global. Fela começa sua carreira musical em uma temporada na Inglaterra e a aprofunda quando volta à Nigéria; com a ida aos Estados Unidos —por conta de uma guerra civil em seu país, em 1963— as definições do gênero são elaboradas do jeito que conhecemos até hoje.
Com o contato com movimento Black Power, Malcolm X e seus ideais, tópicos como anticolonialismo, anti-imperialismo, a crise na Nigéria, pan-africano e as trocas culturais nas diásporas deixam marcas profundas em Fela e em seu projeto musical.
Rafael de Queiroz, DJ, professor, doutor em Comunicação e pesquisador de música e pensamento negro, nos insere na cena: “Nos EUA, ele conhece Isidore Smith, que era uma pantera negra e se transforma em uma espécie de mentora dele em termos políticos. É ela quem o instiga a pensar: ‘O que você tem de África pra trazer pra gente?’. A partir daí, Fela reformula o nome da banda para África 70, começa a pensar nos termos sonoros e políticos de sua música.
Fela Kuti & Africa 70
Confira a performance do astro nigeriano em Berlim, em 1978
Tony Allen encontra a batida que vem a ser o afrobeat e as canções ganham um conteúdo mais politizado, denunciando o racismo, o imperialismo e a corrupção do governo de Nigéria.
Eis a tônica do afrobeat que explode nos anos 1970 e 1980, exportando o nome do gênero, de Fela e da Nigéria ao mundo: o caráter polirrítmico, através da união de elementos da percussão africana, do highlife —gênero que costura Serra Leoa, Nigéria e Gana e que mistura jazz a calypso—, de mais jazz, da música iorubá, do funk, do soul e do rock psicodélico. Tudo isso embala os cantos altamente influenciados por coros tradicionais de África e por um clima de conclamação.
No afrobeat, as bandas são gigantes, com ares de orquestras, e emblemáticas por suas linhas de sopro, guitarra e percussão; era comum que o África 70 se apresentasse com duas baterias, dois saxofones e duas guitarras no palco. Baixo, conga e xequerê também marcam presença. Os vocais contam quase sempre com backing vocals, e as letras se apoiam no pidgin, que aqui a gente usa de referência pro inglês que incorpora também as línguas locais faladas em determinado território, no caso, o oeste africano. Ah, e para arrepio dos ouvidos da Geração Z, as faixas comumente atingiam 15 minutos de duração.
West African Highlife Band
Veja performance da banda
Já o que se conhece enquanto afrobeats contemporâneo dá conta da cena musical pop que surge na mesma região, principalmente em Nigéria e Gana, ao fim dos anos 1990, e que se expande para o Reino Unido entre as décadas 2000 e 2010. Também dá pra chamar de afro-fusion e afropop.
O termo nasceu de forma despretensiosa durante um programa de rádio do Reino Unido, apresentado pelo DJ Abrantee. O inglês, que é filho de ganenses, já estava bem ligado nesse fervo cultural e mandava vários desses sons durante a programação; “afrobeats” nasce como uma forma de “brifar” o público europeu que o escutava.
O que cabe na caixinha do afrobeats? É complexo estabelecer delimitações, já que o conceito é bem mais abrangente que o afrobeat, mas há, sim, elementos que o forram: Juju (som popular da Nigéria com matriz na percussão iorubá), hiplife (jeitinho ganense de unir hip hop a highlife), ndombolo (música de pista vinda do Congo), dancehall (estilo jamaicano), hip hop, R&B e música eletrônica.
Na lírica, as narrativas de amor romântico e flerte são muito presentes, mas há espaço, sim, para as pautas sobre a experiência da diáspora africana, a autoafirmação preta e o combate ao colonialismo. Uma faixa que expressa bem essa última ideia é Another Story, de Burna Boy com feat de M.anifest. Na introdução, a canção basicamente desmonta a falácia de que os britânicos tomaram conta da Nigéria pelo desejo de espalhar a palavra da democracia, mas, sim, por interesses comerciais, já que literalmente compraram o território.
Another Story
Veja clipe da música de Burna Boy com participação de M.anifest
Não é exagero dizer que o afrobeats é a grande novidade do mercado musical internacional. A melodia envolvente que serve cadência, a potência na conexão dos artistas negros africanos em diáspora com artistas negros da Europa e da América Central e Latina, a base anglófona e a divulgação nos streamings e plataformas como YouTube e TikTok formam a cama elástica que tem impulsionado o ritmo.
Lembra em meados do ano passado quando descer o feed com o volume ativado era praticamente sinônimo de ouvir “Ule, your body dey gbakam isi/ Ule, open am make I see/ Nyem love nwantiti/ Wey fit make a bad man sing, oh”, seguido pelo mantra de “Ah-ah-ah-ah-ah-ah” quatro vezes? O trecho é de Love Nwantiti (ft. ElGrandeToto), canção de CKay que explodiu a partir do TikTok e alçou o próprio artista às principais praças musicais internacionais dois anos após o lançamento da track.
Por pelo menos duas semanas em outubro de 2021, o agora hit viral ostentou o título de vídeo musical mais assistido no mundo inteiro no YouTube, além de seguir popular no Instagram e no Spotify. Um mês antes, ela já tinha estreado nas paradas norte-americanas na posição 21 no Billboard Global Excl. U.S. e na 30 da Billboard Global 200. Também ocupou o posto de música mais buscada no aplicativo Shazam —e, enquanto essa matéria está sendo finalizada, ela segue no número 90 da lista semanal das Top 200 Global, que compila as faixas mais encontradas com o Shazam pelo mundo.
Love Nwantiti
Confira o clipe de CKay que virou um hit nas redes sociais
Muito se retorna à faixa One Dance, parceria do popstar Drake com WizKid presente no disco Views (2016), como um fator preponderante para o alcance que o afrobeats tem hoje. Quatro anos depois, WizKid comprovou —e ainda comprova— que sua carreira solo também deve ser apreciada. Em 2020, ele lançou o álbum de estúdio Made In Lagos; além de emplacar o hit Essence ao lado de Tems, o álbum foi indicado ao Grammy na categoria melhor álbum de global music.
Essence
Hit de WizKid conta com participação de Tems
Porém, é fato que o grande expoente do gênero é Burna Boy, que batizou o disco que lançou em 2019 —e a si próprio— com o apelido da Nigéria, “African Giant”. A obra também foi indicada para a categoria melhor álbum de global music no Grammy Awards de 2020.
O disco seguinte de Burna, Twice as Tall (2021), repetiu o feito, algo inédito para um artista nigeriano. E, dessa vez, ele venceu a disputa. Twice as Tall estreou em primeiro lugar na parada de álbuns internacionais da Billboard e, logo nas primeiras horas após o lançamento, acumulava mais de 5 milhões de streams pelo mundo. Este ano, Burna Boy se apresentou em Nova York, lotando o emblemático Madison Square Garden. É o domínio do afrobeats.
Burna Boy
Músico fez performance explosiva de 23 no Madison Square Garden
Os ventos do afrobeats parecem soprar na direção do funk brasileiro. O grande case? Socadona, hit de Ludmilla com parceria da cantora norte-americana de ascendência porto-riquenha Mariah Angeliq e do jamaicano Topo La Maskara, que foi lançado em novembro de 2021.
Sobre o som, Rafael de Queiroz pondera: “Percebo mais a influência do dancehall e reggaeton, mas se toca Peru, do Fireboy DML, numa festa e logo depois Socadona, eu vou achar que tem, sim, uma lógica ali”.
Já a DJ e jornalista Julia Reis ressalta o uso dos adlibs como um diálogo entre a faixa de Ludmilla e as produções de afrobeats. Assista abaixo:
Ué, mas cadê a Nigéria? Além da célula melódica dos adlibs, o dancehall sustenta a ligação com o afrobeats. Entretanto, é interessante pensar o desafio que há na conexão entre ritmos musicais de culturas de diferentes lugares de fala —tanto na língua quanto no território.
O som de Ludmilla tem o incrível mérito de costurar versos em português, espanhol e inglês, mas, em termos continentais, permanece dentro da América, mesmo em movimento. Na hora de buscar a África, outros lugares que não a Nigéria podem aparecer primeiro, como a Angola, que também foi colonizada por Portugal e tem o português enquanto língua oficial. A influência do kuduro, ritmo vindo de lá, também está no som.
Porém, é a construção coreográfica —a do clipe oficial e não do challenge no TikTok— que a relação Brasil e África, representada por Angola, se firma. Para a dança de Socadona, Ludmilla e o coreógrafo Edson Damazzo, o Biubiu, se inspiraram no vídeo Jerusalema Challenge, do Grupo Fenómenos do Semba.
Fenómenos do Semba
Acompanhe os passinhos do Jerusalema Dance Challenge
Já o DJ e produtor musical Rennan da Penha, expoente do funk 150 BPM, navega por um gênero lateral ao afrobeats, o afrohouse: “‘Que sa Foda’, do Deejay Telio, é uma música muito dançante e similar ao nosso funk. Foi ali que me apaixonei pelo afrohouse”, relembra. As afinidades líricas entre afrohouse e o funk carioca estão nos papos sobre amor, festa e vivências gueto-favela. Mas, claro, as batidas são principal plataforma de intercâmbio. “As provas são mais do que concretas: desde que eu toquei um afrohouse chamado Indra, do DJ Breyth, no Baile da Penha, vi que era um ritmo que entraria perfeitamente aqui no Brasil”, testemunha Rennan.
Me Beija e me Abraça
Rennan da Penha, MC Flavinho e DJ Wendel CZR estão por trás da música
Sem fazer previsões efêmeras sobre como o afrobeats irá moldar o mercado da música brasileira, Rafael de Queiroz atenta para aquilo que já comprovou ser atemporal: “A música sempre foi a linguagem de conexão e comunicação da cultura negra, de reterritorializar, reapropriar e transformar as coisas. Por isso a gente conversa tão bem: a música dos pretos africanos faz sentido pros pretos do Brasil”, pontua.
Brenda Vidal
Brenda Vidal é jornalista, redatora e poeta gaúcha. Autora da obra Sujeita (2020), fala de música há pelo menos cinco anos, além de curtir cultura, direitos humanos e meio ambiente. Atualmente é editora de redação na Brasa Mag e planejamento criativo e estratégico nas redes de O Joio e O Trigo.
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