Divulgação/EMI
Há 50 anos, a indústria musical brasileira entrava numa era de ouro, e uma geração de novos artistas desabrochava, guiada pela bossa-nova e com uma coleção de discos clássicos no forno
No ano de 1972, a música brasileira estava fervilhando. Os discos nacionais lançados naquele início de década narram uma parte da história do país com referências sonoras ousadas, versos pulsantes e confessionais. Entre eles, está Transa, o segundo disco no exílio londrino de Caetano Veloso. O álbum traz um dos primeiros acenos à sonoridade jamaicana, que crescia timidamente em meio ao terreno psicodélico pavimentado pelo quarteto mais famoso de Liverpool, os Beatles.
Em Nine Out of Ten, uma das faixas de destaque do disco, o músico cita o reggae que ouvia na Portobelo Road, em Londres, com o apoio instrumental de um violão e uma bateria. A fusão sonora remete ao ritmo tropical disseminado mundialmente anos depois por Bob Marley.
Do outro lado estava o canto revelador de Elis Regina, que a consagrou como uma das intérpretes mais célebres da música brasileira. Foi em Elis que a cantora emplacou as Águas de Março, composição de Tom Jobim, entre as 15 músicas mais ouvidas daquele ano nas principais rádios do país.
Além dos voos (quase) solo, o Brasil viu o florescer das guitarras agitadas e inventivas dos Novos Baianos, sob a supervisão do mestre João Gilberto, guia espiritual e sonoro do grupo. Enquanto isso, Milton Nascimento e Lô Borges também partiam para um “retiro criativo”, onde um dos discos mais simbólicos da música brasileira surgia, alçado pela EMI.
Do rock à bossa-nova, esses discos nacionais lançaram as bases sonoras da década de 1970, que ainda reverberam nas criações musicais contemporâneas. Não por acaso, o ano de 1972 pode ser considerado um dos melhores anos da MPB, com uma produção difícil de igualar.
Ao refletir sobre essa era de ouro da indústria fonográfica, a Tangerina separou os dez discos nacionais mais importantes que completam meio século em 2022.
Transa é o primeiro disco de Caetano a ser gravado em formato de grupo. A banda, liderada pelo diretor musical Jards Macalé, incluía Moacyr Albuquerque (baixo), Áureo de Souza (percussão) e Tutty Moreno (bateria). À frente dela, Caetano e Jards também contribuíram com dedilhados mágicos no violão.
Naquele ano, o tropicalista seguia exilado em Londres, mas com outra ideia de Brasil —e de si mesmo—, enquanto compunha as canções do álbum. Se no registro que leva seu nome, de 1971, as confissões soavam soturnas e introspectivas, em Transa, Caetano expande os versos com temperos do samba, funk, rock, jazz e também do reggae.
Dessa imersão rítmica, surgiram composições costuradas a trechos musicais de figuras nacionais como Luiz Gonzaga (Hora do Adeus), Dorival Caymmi (Consolação e A Lenda do Abaeté) e Edu Lobo (Reza). O disco é considerado uma das obras mais sólidas e expressivas de Caetano, além de marcar presença em listas de melhores discos nacionais. O vinil é cobiçadíssimo por colecionadores e ganhou recentemente reedições na Rússia e na Espanha.
It's A Long Way - Caetano Veloso
Diferente dos acenos de Caetano à terra natal, Gil refrescou a cabeça dos brasileiros em Expresso 2222 com reverências ao forró, xote e frevo. O baiano se dedicou a gravar composições clássicas do nordeste para refletir sobre o próprio Brasil: João do Vale (O Canto da Ema), Onildo Almeida (Sai do Sereno, cantada por Gal Costa) e Sebastião Clarindo Biano (Pipoca Moderna) são resgatados no registro.
Na banda, Lanny Gordin (guitarra), Bruce Henry (baixo), Tutty Moreno (bateria) e Antônio Perna (piano e percussão) sacudiam o rock baiano cantado por Gil. Ao longo do álbum, o uso de instrumentos de percussão nordestina (agogô, pífano, triângulo, zabumba) e a sanfona brilham aos ouvidos. Isso sem ofuscar o brilho do artista baiano, acompanhado apenas do violão nas canções Eu e Ele, O Sonho Acabou e Oriente. Com menção honrosa a Back in Bahia, um dos melhores momentos do disco.
Back in Bahia - Gilberto Gil
Da comunidade hippie formada em Jacarepaguá por Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor, Luiz Galvão, Baby Consuelo e Moraes Moreira (1947-2020) nasceu um dos discos mais importantes da música brasileira: Acabou Chorare.
Ao lado de Jorginho Gomes, Dadi Carvalho, Bola e Baixinho e com a mentoria de João Gilberto (amigo de infância de Galvão), o grupo encontrou o equilíbrio sonoro entre o rock ácido dos anos 1970 e a melódica batida da bossa nova.
Dessa combinação ímpar, surgiram hits que ecoam na memória da música nacional, como Mistério do Planeta, Preta Pretinha, Tinindo Trincando, Besta é Tu, A Menina Dança e a refrescante versão de Brasil Pandeiro (Assis Valente).
Ao transitar alegremente pelo forró psicodélico e explorar elementos de percussão afro-brasileira, o quinteto conquistou ficou no topo da lista de melhores discos nacionais segundo a revista Rolling Stone Brasil.
Mistério do Planeta - Novos Baianos
Travessia, de 1966, já havia estabelecido Milton Nascimento como um dos principais artistas daquela geração. O nome do mineiro era sinônimo de qualidade, e Milton estava envolvido em gravações de trilhas sonoras para filmes e numa turnê com o grupo Som Imaginário.
No início dos anos 1970, o artista quis revisitar canções que havia escrito ao lado de amigos da capital mineira e criar novas melodias para elas. Com isso, convenceu a gravadora EMI a lançar um disco duplo —feito inédito no Brasil.
Para dar início à nova produção, Milton escolheu passar uma temporada na sua casa de praia de Piratininga, em Niterói. Os companheiros da aventura foram Lô Borges, irmão caçula do letrista Márcio Borges, e o guitarrista Beto Guedes.
Juntos, eles se aprofundaram em ritmos presentes nas celebrações de matriz africana (do congado ao candomblé) e criaram hits indiscutíveis como Cais, O Trem Azul, Um Girassol da Cor do Seu Cabelo e Nada Será Como Antes.
Clube da Esquina não chegou a ser o primeiro álbum duplo —o registro ao vivo Fa-tal, Gal Costa a Todo Vapor saiu antes e levou o mérito—, mas ficou registrado como um dos melhores discos nacionais.
Trem de Doido - Clube da Esquina
No embalo do sucesso de Clube da Esquina, Lô Borges foi convidado pela gravadora EMI a lançar um disco solo ainda em 1972. Mesmo que o convite fosse muito atraente, o cantor e compositor se viu em um impasse: ele tinha gastado todas as suas canções na parceria com Milton.
O estreante então convidou o irmão Márcio, a trupe do Clube da Esquina (Beto Guedes, Toninho Horta e Nelson Ângelo) e outros músicos, como Flávio Venturini, Novelli, Vermelho, Danilo e Dorival Caymmi, para uma espécie de “oficina criativa”.
O ritmo de criação foi, no mínimo, frenético. Enquanto Lô se apoiava no violão pela manhã, o irmão se inspirava liricamente à tarde. À noite, gravavam todos juntos. Do processo, saíram 15 canções guiadas pelas influências roqueiras do artista e pela psicodelia dos anos 1970. Apesar de levar o nome de Lô, o álbum é popularmente conhecido como “disco do tênis”, pela foto da capa.
Eu Sou Como Você É - Lô Borges
Nos anos 1960, Ben Jor não largou o violão. Dedicado a desafiar a própria versatilidade, flertou com vários ritmos, desde a bossa nova, o samba jazz e a jovem guarda até, claro, a tropicália. Na década seguinte, os movimentos não foram diferentes, mas a atitude do artista, sim.
No disco de 1972, batizado de Ben, ele aparece à vontade com um cabelo black power, óculos ousados e com as roupas todas brancas. O registro se tornou um cartão de visitas da carreira do artista e é apontado como um dos melhores discos nacionais de todos os tempos.
Estão nele os clássicos Fio Maravilha, Morre o Burro Fica o Homem, Domingo 23, Caramba, Moça, Que Nega é Essa?, Paz e Arroz e Taj Mahal (anos depois, plagiada por Rod Stewart). Ben abriu os caminhos para a psicodelia dos discos posteriores do artista, como Tábua de Esmeraldas (1974) e Solta o Pavão (1975).
Taj Mahal - Jorge Ben
Ao lado do diretor artístico Roberto Menescal, Elis separou um conjunto de canções refrescantes e ousadas para interpretar em 1972. Muitas delas, inclusive, viraram clássicos pelo encaixe sensível de seu vocal às composições de Tom Jobim (Águas de Março), Aldir Blanc e João Bosco (Bala com Bala), Milton Nascimento (Cais), Belchior, Fagner (Mucuripe) e mais.
Com o auxílio de Luizão Maia como baixista, Hélio Delmiro na guitarra e Paulo Braga na bateria, a intérprete entrou na década com a segurança de quem seria um dos maiores nomes da MPB.
Nada Será como Antes - Elis Regina
No final dos anos 1960, Odair José queria fazer um disco livre de amarras das gravadoras. Portanto, rompeu o contrato com a CBS, que obrigava o músico a gravar com a mesma banda de Roberto Carlos.
Homem livre, chamou Waltel Branco (maestro e arranjador), José Roberto Bertrami (piano), Alex Malheiros (baixo) e Ivan Conti, o Mamão (bateria) para tocarem juntos. A reunião acabou formando o grupo Azymuth, um marco na carreira de Odair e na história da música nacional. Do outro lado, Luiz Cláudio Ramos (que viria a ser diretor musical dos discos de Chico Buarque) e Hyldon dividiram o violão e a guitarra. Todos esses elementos se juntaram para a construção de Assim Sou Eu…, um disco pop, romântico e melancólico.
Deixa Essa Vergonha De Lado, Cadê Você?, Uma Vida Só, Assim Sou Eu… e Eu Queria Ser John Lennon são algumas das criações que brilharam no registro.
Eu Queria Ser John Lennon - Odair José
A Dança da Solidão é um dos maiores discos de samba da música brasileira. Nele, Paulinho da Viola pôde trabalhar simultaneamente a dualidade de suas emoções com músicas melódicas (Guardei Meu Violão, Acontece, de Cartola, e a faixa-título) e destilar a energia carnavalesca em No Pagode do Vavá, Papelão e Falso Moralista, de Nelson Motta.
Envolvente e afetivo, o músico usou da proximidade que teve com Hermínio Bello de Carvalho, Carlos Cachaça, Cartola e Candeia para desenvolver um canto aveludado e aproximar o samba do jazz de maneira sofisticada e hipnotizante.
Coração Imprudente - Paulinho da Viola
Depois de morar um ano na Itália, Elza (1937-2022) lançou um disco para sinalizar o retorno à indústria fonográfica. O penteado black power e o requebrado da artista, na capa, antecedem a chegada poderosa de Elza Pede Passagem.
Para além disso, ela preparou um repertório inédito, com regravações de parceiros musicais e recheado de sambas, como Mais do que eu (João Nogueira, 1972), O gato (Gonzaguinha, 1972) e Pulo, pulo (Jorge Ben Jor, 1970).
A sonoridade se manteve na bossa negra de Elza, mas com influências do soul e principalmente do funk. Arranjado pelo pianista Dom Salvador e com direção musical do maestro Lindolfo Gaya (1921–1987), o disco marca o início de outro momento da carreira da artista. O que, inclusive, pavimentou o caminho até a chegada retumbante de A Mulher do Fim do Mundo.
Saltei de Banda - Elza Soares
Nicolle Cabral
Antes de ser repórter da Tangerina, Nicolle Cabral passou por Rolling Stone, Revista Noize e Monkeybuzz. Nas horas vagas, banca a masterchef para os amigos, testa maquiagens e cantarola hits do TikTok.
Ver mais conteúdos de Nicolle CabralTangerina é um lugar aberto para troca de ideias. Por isso, pra gente é super importante que os comentários sejam respeitosos. Comentários caluniosos, difamatórios, preconceituosos, ofensivos, agressivos, com palavrões, que incitam a violência, discurso de ódio ou contenham links vão ser deletados.
Ainda não tem uma conta?