Janine Moraes/MinC
Enquanto esta matéria é publicada, o forró eletrônico No Ouvidinho, de Felipe Amorim, é a terceira música mais ouvida do Brasil, segundo o Spotify. No ranking nacional da plataforma, o gênero que explodiu nacionalmente durante a pandemia surge outras sete vezes, com músicas de diferentes artistas. No entanto, a força da pisadinha e demais variações, que já foi mais significativa em 2021, tem tudo para encorpar ainda mais nos próximos meses.
Afinal, encerrado o Carnaval fora de época, a próxima grande festa popular do país é a de São João (na foto acima, a de Caruaru-PE, que disputa o título de “maior São João do mundo” com Campina Grande-PB). E, pela primeira vez, o Brasil viverá uma festa junina presencial, de massa, num contexto em que o forró eletrônico foi além das barreiras regionais do Nordeste e do Norte. Nomes como Os Barões da Pisadinha, Mari Fernandez, Tarcísio do Acordeon, Zé Vaqueiro e Matheus Fernandes, desconhecidos antes do isolamento social, hoje são fenômenos nacionais.
Isso sem falar, claro, na grande revelação do forró eletrônico. No dia primeiro de dezembro, você com certeza foi impactado pelas arrobas do Instagram compartilhando nos seus stories aquela listinha personalizada que o Spotify disponibiliza com as faixas mais tocados pelos usuários naquele ano. Em 2021, nenhum rosto apareceu mais nelas —na categoria disco com mais plays—, que João Gomes.
Assista ao clipe de Meu Pedaço de Pecado
Canção é o principal hit do fenômeno João Gomes
Cria da pequena Serrita, cidade pernambucana, o rapaz de 19 anos, entrou pela primeira vez em um estúdio em março do ano passado. Nove meses depois, era um fenômeno daqueles difíceis de se explicar. Seu vozeirão grave que resgata o melhor da tradição dos aboios de vaqueiro —o canto puxado para conduzir gado pelo sertão— nem parece caber no corpo magro de alguém que acaba de ultrapassar a adolescência. O sorriso tímido não condiz com o jeito de cantar que mais parece o de um marrento trapstar atípico para um cantor de seu gênero.
Mesmo assim, João Gomes se transformou no símbolo da ascensão definitiva do forró eletrônico nas paradas brasileiras. Um ritmo que domina há três décadas o Nordeste e que superou preconceitos se transformando agora em um produto consumido em todo o Brasil, graças a um complexo sistema de produção, divulgação e distribuição.
O gênero enfrentou de maneira independente crises como a da pirataria pós-Napster, soube se reinventar através das redes sociais e se modernizou com o intercâmbio com outros mercados.
Escuta a playlist de clássicos abaixo e bora puxar esse fio para entender como a ideia de um ex-árbitro de futebol virou uma das mais poderosas indústrias culturais brasileiras.
Emanuel Gurgel era um bem-sucedido empresário do ramo de confecções de Fortaleza, além de árbitro de futebol. Nos tempos livres, tinha como hobby frequentar os bailes dos clubes da capital cearense.
Emanuel Gurgel, o ex-juiz de futebol que virou 'pai' do forró eletrônico
Seu faro empreendedor se aguçou quando percebeu que o fervo desses eventos era naquela meia hora em que as bandas dedicavam ao forró. Emanuel resolveu assinar a carteira de cinco músicos que tocavam juntos em Iguatu, interior do Ceará, prometendo que um dia iria levá-los ao Domingão do Faustão.
A sanfona, o triângulo e a zabumba ganharam a companhia definitiva de instrumentos eletrônicos (guitarra, teclado e bateria) e de sopro que, diferentemente de quando presentes em discos de forró de outras épocas, agora seriam tocados de um jeito mais próximo do pop.
Curiose para saber como era?
Veja um show do Mastruz com Leite em 1997
Encontrou vocalistas jovens e bonitos, que trouxeram frescor para a imagem do ritmo e encomendou a compositores locais músicas românticas distantes das pautas como o lamento sertanejo, comuns em outros tempos. No dia 22 de dezembro de 1990, no Mangueira Clube de Fortaleza, subia ao palco a sua criação, a banda Mastruz com Leite.
Enquanto o Mastruz era alvo de críticas de imprensa e de músicos mais velhos por quebrar as tradições forrozeiras, Emanuel faturava. Em 1991, logo depois do sucesso do primeiro disco, Arrocha o Nó, ele rompeu com a gravadora Continental, que não fazia muito esforço para colocar um segundo álbum na praça.
Construiu o primeiro estúdio de Fortaleza e criou sua própria gravadora, a SomZoom Records. Além disso, alugou o sinal da Rádio Capital de Fortaleza e de dezenas de pequenas emissoras pelo interior do Nordeste para tocar as músicas do Mastruz e das outras bandas que ele criou. Abriu casas de show e até teve a sua própria marca de caixas de som com equipamentos que suportavam o calor nordestino. Um império totalmente verticalizado, que o fez não depender da grande mídia do Sudeste para faturar.
Gurgel tomava conta de toda operação comercial e decisões estéticas de suas bandas. O romantismo da formação de um conjunto por amigos que escolhiam repertório a partir de seus gostos não tinha espaço no forró eletrônico.
O seu modelo se espalhou pelo Nordeste, inspirando empresários a criarem outras bandas, formando um mercado regional denso em que até a transferência de músicos entre os conjuntos era comum.
Assista ao primeiro DVD do Calcinha Preta
Em 2003, grupo levou mais de 100 mil pessoas a show em Salvador
Em Aracaju, capital sergipana, surgiu o Calcinha Preta. No sertão de Pernambuco, em Salgueiro, apareceu o Limão com Mel. Já em Monteiro, agreste paraibano, foi criado o Magníficos. Algumas das dezenas de exemplos que replicaram a maneira de Emanuel de fazer negócio.
Em 1998, uma inusitada parceria entre o grupo cearense Brasas do Forró e o cantor de vaneirão Gaúcho da Fronteira mudou o jeito de se tocar o forró eletrônico. O disco Forróneirão (ouça abaixo) colocou o andamento da bateria mais rápido e marcado. A sanfona, a guitarra e o teclado deixaram de ser protagonistas.
Mais tarde, o contrabaixo do pagodão baiano foi adicionado e o saxofone, antes solitário, ganhou a companhia de trompete e trombone, formando as populares “metaleiras”.
A pirataria avançava no final da primeira década de existência de forró eletrônico e as vendas de disco caíam vertiginosamente. Emanuel e os outros proprietários das bandas buscavam guerrear produzindo discos em série. O Mastruz com Leite chegou a lançar quatro discos em apenas um ano. Achava que, assim, o disco que chegava falsificado para o consumidor perderia validade rápido.
De nada adiantou. Com o surgimento do Napster e a circulação dos mp3s na internet, o forró eletrônico sentiu o baque. O império Somzoom continuou existindo com suas rádios e bandas, mas a relevância de seus negócios nunca mais foi a mesma.
Isaías Queiroz, cearense da pequena Santa Quitéria, era uma espécie de “faz tudo” na empresa de Emanuel Gurgel. Começou servindo café, terminou cuidando dos shows. Graças a uma relação de intimidade criada a partir de opiniões certeiras que dava ao chefe.
Com o dinheiro que guardou, resolveu criar uma banda chamada Gaviões do Forró. Fracassou. Com o que sobrou, montou sociedade com Carlos Aristides, filho de um famoso empresário de casas de shows em Fortaleza. Surgiu o Aviões do Forró, a banda que criou a segunda era do gênero com sua bateria inovadora comandada por Riquelme, o marcante naipe de metais e o carisma dos cantores Solange Almeida e Xand Avião.
Ouça Começo, Meio e Fim, do Aviões do Forró
Hit estava no primeiro disco de estúdio do grupo
Isaías e Aristides sacaram que se não conseguiriam vencer a pirataria, o melhor era aprender com ela. Dias antes de um show da banda, gravações de apresentações anteriores eram distribuídos de graça nas feiras da cidade. Os CDs gravados de um jeito amador, com um gravador na mesa de som, sem qualquer preocupação do apuro de estúdio, viravam a melhor propaganda do Aviões do Forró.
Com a chegada do Orkut, o modelo criado pelo Aviões do Forró subiu de patamar e virou a ferramenta fundamental para a manutenção das bandas de forró eletrônico. Um show gravado já estava no outro dia em comunidades de compartilhamento de discos na rede social.
Essa ânsia por saber qual seria o novo repertório de um conjunto influenciou na criação de uma curiosa cadeia nordestina de propaganda. Era a “Indústria do Alô”. As bandas vendiam o acesso à mesa de som de seus shows para gravadores de discos independentes.
Antes das apresentações, esses novos “intermediários” batiam na porta de comerciantes daquela cidade oferecendo a oportunidade de os cantores das bandas citarem o nome do comércio nos intervalos das canções.
Para isso, promotores ficavam com placas levantadas com as marcas na frente do palco para que os vocalistas lessem e mandassem o “alô”. Ganhavam a banda, que tinha sua música espalhada nas redes, o gravador, que cobrava pela propaganda, e o comerciante, que via o nome de sua loja falado pelas estrelas nordestinas.
O jeito de se tocar forró eletrônico criado pelo Aviões foi replicado à exaustão, pasteurizando o gênero. A renovação veio através de duas bandas surgidas em 2008. A primeira, a Garota Safada, conjunto que era comandado pelo jovem galã Wesley Safadão e seu jeito mais pop de cantar forró, fortemente influenciado pelo sertanejo.
Garota Safada no São João de Mossoró, em 2010
Grupo revelou o astro do forró eletrônico Wesley Safadão
A segunda, do mesmo escritório da banda de Solange e Xand, a A3 Entretenimentos, se chamava Forró do Muído. Com um ritmo mais lento, uma zabumba e um saxofone marcantes e o carisma de duas irmãs baianas de Uibaí, Simone e Simaria, que explodiram cantando os dramas das jovens mulheres em seus relacionamentos.
Mentes Tão Bem, música das “coleguinhas” (apelido das irmãs), foi regravada por Zezé di Camargo e Luciano. Um dos muitos exemplos do intercâmbio entre a indústria nordestina e os escritórios sertanejos de Goiânia, que aparecia pontualmente no começo dos anos 2000 (César Menotti e Fabiano regravaram em 2005 o sucesso Leilão, da banda Gatinha Manhosa) e se fortalece na virada da década.
Mentes Tão Bem, sucesso do Forró do Muído
Grupo revelou as irmãs Simone e Simaria
Para além da troca de composições entre os mercados, o forró eletrônico aprendeu a se vender de um jeito mais moderno. Esse banho de loja ensinado pelos sertanejos foi fundamental para ultrapassar uma última barreira: o preconceito do Sul e do Sudeste.
Sem renunciar à estratégia dos CDs gravados em show, no fim da primeira década deste século, as principais bandas do forró eletrônico assinaram com gravadoras para distribuir seus discos e negociar shows em escala nacional.
Escritórios de Goiânia viram parceiros comerciais. A Som Livre lança Wesley Safadão em carreira solo. A música Camarote fica no topo das paradas brasileiras por semanas, em 2015. Xand Avião e Solange Almeida seguem o mesmo caminho. As bandas ganham estrutura de comunicação, figurino e palco atualizada. A pecha de “brega” que o gênero carregava desaparece.
Assista ao clipe de Camarote
Música fez Wesley Safadão furar bolhas e virar sucesso nacional
Enfim, o mercado abaixo da Bahia, começa a consumir o forró eletrônico para além de sucessos pontuais de outros tempos ou nas áreas com forte concentração de migrantes nordestinos.
O piseiro ou pisadinha é um subgênero criado em 2002 pelo artista baiano Nelson Nascimento, em que todos os instrumentos de uma banda são substituídos pelo teclado. Ele acabou virando tendência no forró eletrônico nos últimos anos por baratear custos de produção, dialogar facilmente com outros ritmos eletrônicos como o funk e encaixar nos graves dos paredões automotivos, equipamentos fundamentais na divulgação dos hits pelos interiores.
Durante a pandemia de COVID-19, a dupla Barões da Pisadinha emplaca uma sequência de músicas mais tocadas nas plataformas de streaming e abrem o caminho para uma nova leva de artistas como Zé Vaqueiro, Nattan, Tarcísio do Acordeon, Vitor Fernandes e a maior promessa do gênero de hoje, João Gomes.
O gênero atinge seu melhor momento, com uma música cada vez mais digital que se mistura ao rap, funk e até ao trap, sem perder sua essência nordestina original.
Lucas Prata
Lucas Prata, o Caju, é sergipano morador do Rio, se criou atrás do trio elétrico, vendo escola de samba na TV, ouvindo forró na rádio e sonhando com a MTV. Escreveu sobre música na Época e acredita que Jorge Ben é a maior prova que Deus existe.
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