Divulgação/Helen Salomão
No Dia das Mães, a baiana indicada ao Grammy Latino discute a maternidade sob a perspectiva da mulher preta e o instinto criativo que a levou ao segundo álbum, lançado meses após o nascimento de Dayo
“A maternidade sempre foi um desejo”, confessa Luedji Luna, cantora e compositora baiana indicada ao Grammy Latino, em entrevista à Tangerina publicada neste Dia das Mães. Ela esteve no páreo da premiação em 2021, na categoria de melhor álbum MPB, com Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água, segundo disco da carreira, lançado em 2020. É com ele, inclusive, que a artista se apresenta no festival MITA, em São Paulo, no próximo sábado (14).
No mesmo ano em que se preparava para trazer o elogiado álbum ao mundo, Luedji passou pela gestação do primeiro filho, Dayo. “Foi uma grande revolução […]. Eu me sentia madura e pronta para ser mãe. Quando aconteceu, foi recebido com muita alegria e desejo”, relembra.
O que ela não esperava, claro, era viver essa dupla experiência durante uma pandemia mundial. Fato que, obviamente, tornou as coisas ainda mais intensas. “A grande questão foi essa experiência social nova, né? De viver recluso. Atravessou não só o meu trabalho, mas a maternidade. Não ter uma rede de apoio, parir longe da família e viver absolutamente todas as questões que a maternidade e a paternidade trazem, apenas eu, o pai e o Dayo. Fomos nós três por muito tempo”, reflete a artista.
Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água veio em meio a uma correria e tanto. Porém, desperta muito mais momentos de serenidade e calmaria do que quando estava para vir ao mundo. “Corri contra o tempo, viajei para a África, voltei, gravei e, naquela altura, quando a pandemia se instaurou no Brasil, eu não via mais sentido em lançar nada novo”.
Todo o trabalho, portanto, precisou dar uma trégua, não só para entender as novas demandas do mundo, mas para receber com atenção o primeiro filho de Luedji. “A maternidade e o meu segundo disco estavam, ambos, nos meus planos”.
"A gente também precisa escolher viver a maternidade desse jeito livre", aponta Luedji
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Após o nascimento de Dayo, novos caminhos foram propostos ao disco. Embora as composições não tenham sido reviradas —todas já estavam prontas—, o tempo de pós-produção e mixagem proporcionou temperos novos para a obra da artista. “Tive mais tempo. Esse processo durou meses e meses e eu estava lá, enchendo o saco, palpitando… Essa edição foi muito detalhada”, conta.
No registro, a artista celebra a própria identidade e os caminhos pavimentados pelos pais, Orlando e Adelaide, ambos funcionários públicos e ativistas de movimentos negros de Salvador. Ao longo das 12 faixas, Luedji mergulha nas profundas conexões com os atabaques, a sensação do corpo vivo e em movimento, além de mostrar a África “contemporânea”. A artista foi ao continente africano com o intuito de absorvê-lo para o disco. A banda, inclusive, foi gravada toda no Quênia.
Embora o processo de lapidar um novo registro musical e gerar um filho tenham sido, em Luedji, o resultado de uma quase simbiose, o disco não possui nenhuma canção direcionada à maternidade. A iniciativa de unir as duas forças veio no ano seguinte, com Ameixa. O nome da faixa vem da fruta europeia, a favorita de Dayo.
“Na minha gravidez, senti que essa energia da criação estava em elevada potência. Escrevi roteiro do filme [Bom Mesmo… é um álbum visual], pensei em toda a concepção do disco. As canções eu já tinha, mas, ainda assim, o álbum foi concebido enquanto eu criava uma vida dentro de mim”. Ela continua: “Acho que a gravidez veio aumentar essa energia que é inata, até demais, em mim”.
A faixa Ameixa, lançada em 2021, conta com a participação de Zudizilla, pai de Dayo, marido de Luedji e grande rapper gaúcho. Prestes a fazer dois anos, o pequeno já acompanha os pais em momentos musicais. “Ele vai pra ensaio, alguns shows [mais contidos]. Ele acompanha muito o pai, vai ao estúdio. Não estamos incentivando essa vida [artística], mas ele está ali acompanhando [risos]”.
Com a volta do calendário de shows e festivais, as agendas da Luedji artista e Luedji mãe precisaram se encontrar. Para existir um equilíbrio na rotina dos dois músicos, a alternativa é revezar. “Se ele [Zudizilla] está tocando, eu fico. Se eu estou, ele fica. Quando nenhum dos dois podem, a gente tem um babá, que fica nesse período em que vamos fazer show, até a hora de voltar para casa”.
Atualmente, Luedji está escalada em diversos line-ups, entre eles, o Eisenbahn Craftgarten, que ocorreu no último sábado (7), o MITA Festival, o Queremos! Festival e o Rock in Rio, onde se apresenta ao lado da amiga e parceira musical, Liniker. “É algo que estou aprendendo a lidar. Por enquanto, está tranquilo. Como a gente só trabalha à noite ou no final de semana, o Dayo ainda goza muito da nossa companhia”, esclarece.
O retorno definitivo aos shows, contudo, emocionou a artista. “Parecia que eu nunca tinha pisado em um palco. Fiquei igual à música do Gil: ‘Minha alma cheira talco, como bumbum de bebê. De bebê'”, cantarola. A primeira grande aparição de Luedji foi no Rock The Mountain. “Agora, eu só quero mais e mais. Fico com muita vitalidade, com vontade de fazer mais coisas, de cantar, de ver outros shows. Era isso que faltava [nesses dois anos de pandemia]”.
Li um texto que você publicou no Instagram, que eu gostei muito, onde você dizia que hoje em dia a sociedade não encarava muito bem a ideia da maternidade. Me conta um pouco mais sobre isso?
Com todas as conquistas e avanços —ainda que lentos—, a independência econômica, o espaço no mercado de trabalho, esse sonho da maternidade como principal motivação de uma mulher foi se modificando com o tempo. A cada geração que foi passando, as mulheres foram tendo cada vez mais filhos, enfim, também por condições econômicas do Brasil e vários outros fatores. Então, é comum, hoje em dia, ter amigas próximas que abortaram essa ideia da maternidade de suas vidas, que querem outras coisas para si.
Embora eu faça parte desse tempo, dessa geração, eu não fui atravessada por isso. Eu tive uma referência de maternidade muito forte na minha casa com a minha mãe, a minha avó. Então, esse desejo da maternidade me veio muito forte. Até a da adoção, que eu já pensei em algum momento. Eu acho muito bonito.
É, de fato, uma experiência de muita generosidade. Ave Maria! Haja doação, generosidade, paciência. E aí, em uma sociedade onde o pacto civilizatório é a da supremacia da individualidade —o que tudo bem também, né?—, é muito mais sobre o indivíduo e menos sobre o outro. E a maternidade é o oposto disso. É o pensar no outro, viver para o outro e em função do outro. E era isso que eu queria para mim.
Esse texto nasce muito nesse sentido, de onde eu estou inserida em um contexto social onde isso deixou de ser bonito. E eu entendo os acontecimentos históricos e a crítica por cima dessa romantização da maternidade. Mas, ao mesmo tempo, eu faço parte de um recorte, né? O recorte racial, onde mulheres negras foram ceifadas de viver essa experiência com plenitude, porque não é ser só mãe, né? Parir, todo mundo pare. Mas a maternidade ela é vivida, às vezes, de maneira muito violenta. Muito precária, muito vulnerável.
Eu me sentia na condição de ter uma maternidade plena, como eu tenho vivido. Eu tive o parto que eu quis, continuo fazendo o que eu amo. O meu trabalho me permite ser mãe e cantora, embora seja uma loucura essa vida. Essa negação da maternidade como se ela invalidasse esse lugar de mulher independente. Eu continuo sentindo autonomia para decidir as minhas coisas na minha carreira, as coisas que eu sonho. É uma liberdade que precisa considerar outra vida, mas é liberdade também.
Luedji lê O Pequeno Príncipe Preto, de Rodrigo França, para Dayo
Divulgação/Helen Salomão
Você compartilha bastante conteúdo sobre isso nas redes sociais, né? Sobre a “Educação Positiva”, essa questão de ensinar o afeto para a criança, não pensar que ela vai reagir como um adulto, porque criança não é um adulto, enfim. Esse é um movimento crescente que eu vejo nas redes de muitas mães e personalidades que estão estimulando essa criação para a nova geração. Como você chegou até isso?
Acho que, na nossa trajetória como pessoas negras, estamos em uma sociedade onde a gente ainda precisa disputar a humanidade, né? O tempo todo, as pessoas dizem que nós não somos humanas, que não somos dignas de afeto, que não somos dignas de respeito, então, isso é o que está dado. A despeito do que está posto na sociedade, no sentido dessa lógica do racismo colocar a gente em situações de violência e desumanas, eu tive um filho para ser contraponto do que está posto. Se a gente já vive em uma sociedade que nos desumaniza e que nos violenta, por que vamos continuar com a repetição dessa lógica dentro de casa?
Então, é nesse sentido que eu leio e pesquiso sobre comunicação e educação não violenta, foi nessa perspectiva também que eu procurei um parto humanizado. Ou seja, eu vou humanizar o meu filho, já que a sociedade não faz isso. Desde o nascimento ele vai ter respeito, vai ter acolhimento.
Mas é lógico que eu tenho vícios, eu venho de outra geração, que é de outra educação, e é lógico que nem sempre eu tenho paciência. Mas tudo isso a gente constrói. Então, eu pesquiso, leio, tento construir uma outra narrativa para ele saber que ele é humano. Porque aí, quando ele for para o mundo, ele vai saber disso, vai saber o que é respeito. E não vai aceitar menos do que isso.
Nicolle Cabral
Antes de ser repórter da Tangerina, Nicolle Cabral passou por Rolling Stone, Revista Noize e Monkeybuzz. Nas horas vagas, banca a masterchef para os amigos, testa maquiagens e cantarola hits do TikTok.
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