MÚSICA

Urias apoia as mãos no rosto em foto de divulgação do disco de estreia Fúria, 2022

Divulgação/João Arraes

Entrevista

Por que você deve ficar de olho na Urias em 2022

Ex-assistente pessoal de Pabllo Vittar e “little monster” assumida, a artista mineira reinventa o próprio pop eletrônico em disco de estreia

Nicolle Cabral
Nicolle Cabral

“Não vou ficar de falsa modéstia”, anuncia Urias, rindo. “Acho que pela qualidade do meu trabalho, não dá mais para ignorar”, completa. A previsão da cantora foi confirmada logo na sequência. Durante a entrevista, a artista de múltiplas habilidades recebeu a notícia de que havia subido mais uma posição no top 40 viral do Spotify, com o single Tanto Faz. A reação foi um sorriso tímido, porém largo.

Para a cantora de 26 anos, dona de um dos melhores álbuns já lançados em 2022, subir nos palcos, cantar e ser famosa “era um sonho meio que impossível”. Agora, ela se prepara para acompanhar Pabllo Vittar numa turnê europeia.

Urias veste preto em foto de divulgação do disco de estreia Fúria, 2022

Em Fúria, a artista se dedicou a exteriorizar a raiva, sentimento com o qual convive há anos

Divulgação/João Arraes

Nascida e criada em Uberlândia, cidade de Minas Gerais, Urias cultivava, em segredo, o desejo de ser cantora. Para isso, precisou se estabelecer financeiramente. Passou por agências de telemarketing, fez alguns “bicos” como DJ e trabalhou em uma grande marca de fast fashion no shopping da cidade. “Eu não deixava de sonhar, mas eu sabia que existia a chance de isso não se realizar. Eu não estava nos lugares certos, não conhecia as pessoas certas. Sabia que meritocracia era uma coisa nada a ver”.

A aventura musical começou com a gravação de covers. Dos talentos nacionais, se inspirou nas canções de O Rappa, Meu Mundo é Barro, e Alcione, para testar a própria voz. A versão do clássico de Marrom, Você Me Vira a Cabeça, contabiliza três milhões de plays no Spotify.

Little monster confessa

Das referências internacionais, sempre cita Beyoncé, Rihanna e Lady Gaga, que, para ela, são como a “Santíssima Trindade”. “Eu era muito little monster, sabe? Tudo que a Lady Gaga estava ouvindo ou fazendo, eu fazia igual. Teve uma época que ela falou que gostava do Iron Maiden e eu fui lá e ouvi a discografia inteira [risos]”.

As versões feitas pela artista, portanto, acabaram atraindo a curiosidade do público e também a dos produtores musicais Rodrigo Gorky e Arthur Gomes (ou Maffalda, são conhecidos). Eles a convidaram a investir na carreira artística. Juntos, desenvolveram o primeiro EP da cantora, batizado de Urias.

O gracejo do destino, contudo, veio do encontro com a parceira musical e amiga, Pabllo Vittar. Urias foi contratada como assistente pessoal da drag queen e, rapidamente, ganhou o título de “fiel escudeira” da dona de Batidão Tropical. A sintonia da dupla foi tamanha que não demorou para que Urias fosse convocada a participar da faixa Ouro, do disco Não Para Não (2018) —repleto de hits carnavalescos, como Buzina, Problema Seu e Disk Me.

“Depois de eu lançar os covers e terem me ouvido cantar, falaram: ‘Olha, a gente pode montar uma equipe para compor para você’. E eu lembro de dizer: ‘Gente, eu quero escrever. Acho que ninguém vai conseguir falar do jeito que eu quero'”, relembra.

Segundo a artista, o hábito de escrever sempre esteve presente, mas ela precisava achar o formato correto. Enquanto pegava o jeito, tentou alguns caminhos. “Sabe quando você pensa: ‘Ai, vou ter um diário’. E aí dá três dias e você fala: que nada a ver [risos]’. Eu fazia muito essas coisas. Mas, depois, eu decidi ir atrás do que eu tinha escrito e passei a registrar o que vinha na minha cabeça, umas palavras, frases. Eu pensava: ‘Nossa, estou sentindo isso. Estou sentindo aquilo’, e escrevia”.

As inspirações para encontrar sentido nessas palavras acabaram surgindo de relações próximas. Entre elas, Linn [da Quebrada], Liniker e a própria Pabllo. “Gosto muito também do trabalho da Ventura Profana —que me dá muita força motora— e a Bixarte, ‘mestra das palavras’. Todas elas me direcionam para ser quem eu sou”.

Disciplina fundamental

Por meio da disciplina, aprendeu como organizar esse caldeirão de sensações. “Se eu não tiver disciplina, não pego o jeito, não vira costume. Então, muita das vezes eu me forçava a escrever. Mesmo que eu ficasse horas escrevendo e não saísse nada —como já aconteceu várias vezes—, eu ficava sentada até ter alguma coisa”.

Sonoramente, Urias foi embalada por ritmos externos a ela. Ela lembra em especial de uma compilação em DVD “hip-hop anos 2000”, repleto de videoclipes. O registro, inclusive, foi responsável por estimular a cantora a ver a música sempre com um anexo visual e artístico. O que explica a estética bem definida de FÚRIA, disco de estreia.

Urias posa ao lado de um boi em capa de Fúria

O disco conta com 13 faixas e participações de Monna Brutal, Ebony, Charm Mone, Hodari e Vírus

Divulgação/João Arraes

“Quando você é criança, você não escolhe muito bem o que ouvir. Mas lembro de ter bastante pagode, grupos de axé regionais, o D’Corpo Inteiro”, relembra. “Quando pude escolher, veio o RBD na minha vida e, minha Nossa Senhora, eu era muito fã. Deu aqueles bafafá no show e minha mãe veio de lição, viu?”.

“Ela disse: ‘Ainda bem que você não foi, você nunca vai em show na sua vida’. Olha o que aconteceu agora [risos]”, brinca a artista ao relembrar do primeiro show da turnê de FÚRIA, no último dia 4 de fevereiro, no Cine Joia, em São Paulo. A apresentação teve lotação máxima e contou com os fãs cantando o repertório da artista do começo ao fim.

União dos poderes

Fato que nos leva à recepção do disco de estreia, muito elogiado. Dividido em duas partes, sendo a primeira apresentada ao público por meio do single Racha, o lado A já abrangia uma consistência potente de quem estava sendo gerenciada pela Mataderos e Brabo Music Team, equipes por trás do sucesso de Vittar.

Os créditos, contudo, são divididos entre o time e o talento da cantora. Ao esmiuçar os processos criativos do disco, ela explica: “Cheguei com um tema [para os produtores da Braba Music]. Eu queria falar sobre raiva e as vertentes de tudo isso. Foi Mal, por exemplo, eu queria uma música para ouvir triste e chapada [risos] e eles foram criando. É sempre uma mistura. Chega uma opinião aqui, um instrumento, um vocal ali, e as coisas vão se construindo. Não tenho muita regra. Todos os processos são válidos”. Essa colaboração artística, portanto, fez com que Urias conquistasse 12 milhões de streams no Spotify após um mês do lançamento do disco.

Os números a levaram ao posto de primeira mulher trans da história a colocar duas músicas do mesmo disco simultaneamente no top 15 do iTunes BR (Tanto Faz e Foi Mal).

Urias posa em cena de Foi Mal, single do disco Fúria, de 2022

Assista ao clipe de Foi Mal

O pop psicodélico embala o pedido de desculpas a um ex-namorado

Além de Foi Mal, o pop psicodélico proposto por Urias —que nos remete ao baixo de Kevin Parker, do Tame Impala, e uma “palinha” de Chamber of Reflection, do Mac Demarco—, o disco transita em outras esferas da música contemporânea. Racha, Peligrosa e Cadela são alguns exemplos que fogem do pop “lugar-comum”, estabelecido pela indústria. Batidas eletrônicas, uma áurea underground, falsetes estridentes e onomatopeias compõem as canções.

Já em Maserati e Pode Mandar, a artista transita entre batidas soturnas e rimas de hip-hop, gênero que admira e dedica os versos mais furiosos. “Pode Mandar surgiu de um papo que eu tive com o próprio Vírus, porque tudo é muito organizado para a gente se ferrar. Nisso, veio a música. Ela fala sobre a pressa de ter as coisas, porque não sabemos até quando estaremos vivos”, pontua a artista sobre as nuances de se apresentar como uma cantora transsexual.

“Me faz querer vingança quando eu olho pro passado/ Perto do que eu mereço, o que eu peço não é nada/ Depois de sofrer essa violência organizada/ Não subestimem a minha inteligência/ Não sou do tipo que tem paciência”, rima na segunda faixa do disco.

Ao analisar a própria trajetória, e a de quem veio antes, a artista enfatiza: “Tem muita gente que fez muita coisa —até fora da arte— para nós estarmos aqui. Só de estar viva é um sinal que muita gente lutou para eu estar viva”.

Na hora de escolher quem somaria com ela em feats, as respostas vieram sem qualquer hesitação: “São artistas que eu acredito serem o futuro da música brasileira. No sentido de adicionar culturalmente, liricamente e esteticamente para a nossa cultura”. Os nomes, escolhidos a dedo, foram Vírus, Hodari, Charm Mone, Monna Brutal e Ebony. Sobre as duas últimas, a artista não economiza elogios: “Para mim, não tem outra melhor no rap que a Ebony, no segmento trap/rap, e ninguém melhor que a Monna no hip-hop/rap”.

"Não sou muito competitiva, mas gosto de me ultrapassar nas coisas. Me colocar como ponto de partida"

Integralmente movido por emoções, FÚRIA contempla todas as inquietações de Urias. “Tenho muita coisa para falar. Coisas que já têm sido ditas, mas que agora as pessoas estão dispostas a ouvir, e talvez, ouvir de mim”. As canções traçam paralelos entre a confusão, a raiva, o amor, o desprezo, o acolhimento e a solidão, o que faz com que o disco se construa “para as pessoas entenderem de onde vem essa raiva e para onde eu vou jogar tudo isso”, explica a artista.

Pronta para decolar

“Eu não quis me limitar, entendeu?”, pontua sobre os caminhos editoriais e sonoros de FÚRIA. Ela acredita navegar com mais facilidade na própria potencia musical sem as estruturas enrijecidas da música pop. “Já tenho uns quatro CDs na minha cabeça”, conta, rindo. “Só não sei para quando, mas já tenho tudo montado: as estéticas e as histórias que eu quero contar”.

Com turnê marcada na Europa ainda no primeiro semestre, Urias fará seis apresentações de abertura da turnê de Pabllo Vittar, I Am Pabllo, que inclui as cidades de Dublin, Varsóvia, Milão, Londres, Amsterdã e Paris. Será a primeira vez que as amigas e parceiras musicais desbravam juntas os palcos para além da América Latina.

“Me sinto muito honrada, porque crescemos juntas, sou amiga de Urias desde 2013”, lembra Pabllo Vittar em papo com a Tangerina. “Eu não era Pabllo Vittar, ela não era Urias ainda, a gente estava galgando o nosso lugar no palco. Eu olho tudo o que ela vem conquistando e sou muito orgulhosa dessa garota. Ela é muito talentosa”.

Hipnotizante, voraz —ao mesmo tempo que meiga— e, como disse Pabllo, muito talentosa. O nome de Urias não poderá passar batido por você em 2022. Muito menos a voz dela.

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Antes de ser repórter da Tangerina, Nicolle Cabral passou por Rolling Stone, Revista Noize e Monkeybuzz. Nas horas vagas, banca a masterchef para os amigos, testa maquiagens e cantarola hits do TikTok.

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