Divulgação/Netflix
O drama da Netflix, que conta com a ótima atuação de Olivia Colman e a direção sensível de Maggie Gyllenhaal, consegue transpor para a tela as complexas personagens de Elena Ferrante
A Filha Perdida, filme da Netflix com três indicações ao Oscar 2022, é um drama que flerta o tempo todo com o suspense, cercado por uma aura enigmática que emana não só das escolhas de Maggie Gyllenhaal, atriz que estreia na direção, mas também da fonte da história.
O longa, que tem Olivia Colman e Dakota Johnson no elenco, é uma adaptação do livro homônimo de Elena Ferrante, misteriosa escritora italiana que assina sob pseudônimo e ninguém sabe direito quem é. Não ter um rosto ou uma persona para conectar às histórias torna sua obra ainda mais enigmática, o que com certeza reforça o clima do filme.
Famosa no mundo todo após o lançamento da tetralogia de livros batizada de Série Napolitana – iniciada em 2011 com A Amiga Genial e transformada em série pela HBO – Ferrante trata em seus escritos das complexidades, particularidades e incoerências das relações humanas. Seu estilo é intenso, rico em simbolismos, arroubos e silêncios significativos, e transmite de forma perspicaz as experiências e pontos de vistas das personagens femininas.
Um dos grandes medos dos fãs era de que a potência, ritmo e sutilezas de Ferrante se perdessem na transposição para a tela, e a autora chegou a impor como condição para a adaptação que uma mulher dirigisse o filme. Mas Gyllenhaal conseguiu traduzir muito bem para o cinema a narrativa única da escritora, mostrando-se fiel ao traço definidor da obra de Ferrante: explorar a complexidade da experiência feminina.
Trailer de A Filha Perdida (2021)
Filme estreia em 31 de dezembro na Netflix
O filme conta a história de Leda (Colman), uma mulher madura, divorciada, professora universitária de italiano e mãe de duas filhas já crescidas, que tira um tempo para si à beira-mar, em uma pequena cidade costeira da Grécia.
Depois de alguns dias de total calma e tranquilidade, as coisas começam a tomar rumos tensos e ameaçadores com a chegada de uma família enorme, de relacionamentos intensos e conflituosos, e cuja presença e atitudes perturbam Leda.
Ela então cria uma ligação estranha com um dos membros da família, a jovem mãe Nina (Johnson). Enquanto a observa, Leda é dominada por memórias de escolhas difíceis e contraditórias que fez, como mãe e mulher, com consequências para si e sua família. A partir daí, o que parecia ser uma história serena e agradável, tendo como pano de fundo as belas paisagens da Grécia, transforma-se em um suspense angustiante e uma densa sessão de psicanálise.
A narrativa é recheada de simbolismos, a começar pelo nome da protagonista – Leda, na mitologia grega, foi enganada por Zeus, que se transformou em um cisne e a estuprou, fazendo com que engravidasse. Uma metáfora para a visão que o filme apresenta do que é ser mãe e mulher.
Os símbolos pontuam cenas simples e aparentemente despretensiosas, como quando Leda chega no apartamento alugado e admira algumas frutas vistosas sobre a mesa. Mas, ao prová-las, vê que a outra face está podre, aludindo ao fato de que o que escondemos pode não ser tão bonito quanto o que mostramos.
O apego totalmente irracional da protagonista por uma boneca também traça paralelos com a infância e a ilusão de controle sobre os filhos, e o incômodo de Leda com a família que invade sua paz demonstra o quanto essa instituição pode ser invasiva e desconfortável.
Mas o que chama realmente a atenção é a cola que une as mulheres do filme. Uma espécie de solidariedade mútua em reconhecer as armadilhas comuns nas quais todas nos vemos presas em certos períodos da vida. Papéis que nos são impostos, atitudes que são esperadas de nós e se chocam contra a crueza e sinceridade de nossos mais profundos desejos, e deixam uma ferida exposta que precisa de cura em termos pessoais e sociais.
O tema central de A Filha Perdida é, justamente, uma das faces dessa ferida: a maternidade e como ela é imposta às mulheres como natural. O filme é certeiro em transmitir a estranheza e o incômodo dessa condição a que as mulheres têm que se resignar, abrindo mão de seu corpo, tempo, sonhos e até mesmo identidade, enquanto a carga para os homens, como pais, parece ser desproporcional.
Olivia Colman brilha como Leda, protagonista do filme A Filha Perdida, baseado no livro de Elena Ferrante
Divulgação/Netflix
Aliás, certamente foi proposital, mas todos os personagens masculinos do filme são completamente patéticos e dispensáveis. Seus papéis são minúsculos e meramente acessórios, enquanto os reservados às mulheres são um caleidoscópio vivo e selvagem, prontos para nos surpreender a cada cena. É, parece que o jogo virou, não é mesmo?
Porém, é preciso entender que A Filha Perdida não é um tratado antimaternidade, mas sim um retrato real, um desabafo, um grito que nos recusamos a ouvir. Em momento algum Leda demonstra aversão a ser mãe, pelo contrário. Isso fica claro em uma das cenas mais marcantes, quando Nina pergunta como ela se sentiu longe das filhas.
Ao mergulhar na alma feminina, A Filha Perdida mostra justamente a face ambivalente da maternidade, e o quanto reconhecer o seu lado amargo ainda é um tabu social.
Leva que tá doce! Filme com cara de cult europeu e que trata de assuntos densos e tabus sociais. O ritmo pode incomodar um pouco quem não está acostumado com esse tipo de linguagem, mas vale a pena prestar atenção.
Dois pelo preço de um: Se você curtiu Nomadland, vai curtir esse!
Presta atenção, freguesia: Na atuação fenomenal de Jessie Buckley (que faz Leda mais nova). Perfeita. Também vale ficar de olho na fotografia de Helène Louvart e na edição de Affonso Gonçalves, responsáveis pelo clima opressor e agoniante de algumas cenas.
Gabi Franco
Editora de filmes e séries na Tangerina, Gabi Franco é criadora do Minas Nerds, jornalista, cineasta, mãe de gente, pet e planta. Ex- HBO, MTV, Folha, Globo… É marvete, mas até tem amigos DCnautas.
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