Jesse Grant/Disney
Diretora de Red: Crescer É uma Fera chegou ao estúdio como estagiária e já ganhou um Oscar de melhor curta de animação em 2019, por Bao
Era uma tarde de maio de 2018 nos estúdios da Pixar, em Emeryville, subúrbio de San Francisco, e uma tímida mas animada Domee Shi apresentava seu curta Bao para uma plateia de jornalistas de vários países. Então com 30 anos, ela era a primeira mulher a dirigir sozinha um curta em um dos principais estúdios de animação do mundo.
O que a plateia daquela apresentação não sabia é que Shi já estava se preparando para quebrar outro teto de vidro como a primeira mulher a dirigir sozinha um longa-metragem em 36 anos de existência da Pixar.
Àquela altura, o estúdio já havia dado o sinal verde para a produção de seu primeiro longa, Red: Crescer É uma Fera, que acaba de chegar ao Disney+. (Brenda Chapman dirigiria Valente, lançado em 2012, mas foi demitida no meio do projeto e divide os créditos com Mark Andrews, que finalizou o filme.)
Incentivada pelo pai, Shi chegou à Pixar em 2011, aos 22 anos, como estagiária de storyboards, depois de algumas tentativas frustradas. Mais tarde, trabalhou em produções como Os Incríveis 2 (2018) e Divertida Mente (2015). Este último, aliás, dirigido por Pete Docter, um dos mentores da cineasta, que a incentivou a fazer Bao e apoiou o final esquisito que Shi queria dar à história.
No curta, disponível no Disney+, uma mãe chinesa sofrendo de síndrome do ninho vazio começa a cuidar de um bolinho como se fosse um filho. Quando ele decide partir para uma vida independente, a mãe o engole, numa metáfora nada sutil para a dificuldade de aceitar que filhos têm vida própria.
A história, que ganhou o Oscar de melhor curta de animação em 2019, era bastante pessoal para Shi. Filha única, ela nasceu em Xunquim, no sudoeste da China, e emigrou com os pais para o Canadá quando tinha apenas dois anos.
Cena do curta-metragem Bao, dirigido por Domee Shi
Divulgação/Pixar
Em Red: Crescer é uma Fera, ela apresenta uma espécie de outro lado de Bao: os personagens não são os mesmos, mas é novamente uma família sino-canadense que está no centro, desta vez sob a perspectiva da filha adolescente, que está passando pela puberdade e começa a entrar em conflito com a mãe.
Aos 13 anos, a garota Meilin Lee se divide entre a escola, as amigas, a paixão por uma boyband e as obrigações familiares, sobretudo o templo que é comandado por sua mãe. Mas, depois de uma demonstração de superproteção particularmente embaraçosa, Mei passa a se transformar em um gigante panda vermelho toda vez que fica nervosa, animada ou tomada por outra emoção forte.
É uma metáfora não muito sutil para as transformações da puberdade, o momento em que a infância começa a dar lugar a interesses amorosos e o corpo parece incontrolável.
É claro que Domee Shi não chegou a se transformar em um panda, mas a diretora também passou por conflitos com a mãe quando era adolescente, em relação principalmente a diferenças culturais por ter sido criada no Ocidente. E vemos isso refletido em seu filme.
Explorar esses temas de modo até bastante direto para um filme de classificação livre —em determinada cena, Meilin percebe que se sente atraída por um garoto mais velho e perde o controle desenhando cenas amorosas com ele— não é pouca coisa. Fazer isso do ponto de vista de uma garota é ainda menos comum.
Em entrevista ao New York Times, Domee Shi se lembrou de qual era sua preocupação antes de uma reunião com executivos da Disney que poderiam dar o sinal verde para o filme: “Como eu posso vender isso e como posso deixar homens brancos que nunca passaram por isso animados com a ideia e com vontade de saber mais?”.
“É um lado das meninas adolescentes que nós nunca vemos”, completou Shi ao jornal. “Nós somos tão esquisitas, suadas, luxuriosas e excitadas quanto qualquer menino”.
A preocupação de Shi era pertinente, pois a Pixar se notabilizou por produções centradas e, amizades masculinas —os chamados bromances— como as de Woody e Buzz Lightyear, de Toy Story, ou Mike e Sully, de Monstros S.A., entre outras. Além disso, dos 24 longas lançados antes de Red: Crescer É uma Fera, apenas três tiveram protagonistas femininas: Valente (2012), Divertida Mente (2015) e Procurando Dory (2016).
Red: Crescer é uma Fera (2022)
Domee Shi sabe muito bem do que está falando ao contar história de Meilin Lee
Para ganhar espaço nesse mundo masculino, Shi e outras mulheres contavam umas com as outras, com as mais experientes se tornando mentoras das mais jovens, e com iniciativas informais como a da supervisora de roteiro Jessica Heidt, que em 2017 começou a enumerar quantos papéis femininos com falas havia em Carros 3.
A própria Shi contou com essa rede de apoio feminino. Em 2018, durante aquele evento citado lá no início, em que Shi apresentou Bao, a produtora Nicole Paradis Grindle contou: “Ela [Shi] foi uma entre um grupo de mulheres que uma colega e eu começamos a orientar há quatro anos”.
Na época, os movimentos MeToo e Time’s Up estavam no ápice, denunciando situações de abuso e assédio e exigindo mais espaço para mulheres, e a Pixar estava sob escrutínio nos dois casos —além da falta de mulheres diretoras e de histórias sobre mulheres, um dos fundadores do estúdio, John Lasseter, havia se afastado por conta de denúncias de assédio.
“Eu realmente acredito que existe uma discriminação inconsciente, que influenciou o que aconteceu na indústria e, para ser franca, no mundo todo”, admitiu Grindle na época. “Não é que as pessoas fechem as portas para outros tipos de contadores de histórias, elas não pensem em abri-las. Então, nos últimos anos, nós estamos realmente abrindo essas portas e nutrindo muitos novos talentos”, afirmou.
Red: Crescer É uma Fera faz parte dos esforços da Pixar para abrir essas portas para mulheres, assim como Viva: A Vida É uma Festa (2017) e Soul (2020) fizeram em relação a outros grupos sub-representados. Mas ainda há muito a fazer. Não só a proporção de uma mulher diretora para 25 filmes ainda é muito distante do ideal, como funcionários da Pixar recentemente denunciaram que executivos da Disney, dona do estúdio, têm sistematicamente cortado cenas de afeto LGBTQIA+ de suas animações.
À época do lançamento de Bao, Shi se mostrou esperançosa em relação a mudanças, “Acho que produzir esse curta é um bom exemplo de como a Pixar está explorando vozes diferentes para contar histórias. Me sinto muito honrada de ser a primeira, e espero não ser a última”. Até o momento, ela ainda é a única, mas esperamos que também esteja ajudando outras a chegar onde chegou.
Natalia Engler
Natalia Engler é editora-chefe da Tangerina. Jornalista, mestra em audiovisual pela ECA-USP e pesquisadora de gênero e cultura pop, passou por Omelete, UOL, Folha e Ansa. Do feminismo e do Carnaval.
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