Pedro Dimitrow/Spotify
Em nova temporada, Mano a Mano revela a faceta apresentador do rapper, que busca sempre estabelecer um diálogo com a juventude negra
“O rap fez a minha família olhar no espelho e perceber que era preta”, dispara Emicida no primeiro episódio da segunda temporada de Mano a Mano, podcast do Mano Brown no Spotify. O episódio é o mais longo dos 17 lançados até agora, com quase três horas de duração. A intimidade do papo, no entanto, é regra: todos os episódios de Mano a Mano são conversas muito pessoais, que vão de anedotas a processos criativos, dos maiores medos às maiores conquistas dos entrevistados.
Em certo momento da estreia da segunda temporada, Emicida conta como foi seu encontro com Chuck D, do Public Enemy, grupo que foi uma grande referência para o surgimento do Racionais MCs. “Tem coisas que você passa na sua vida que são aprendizado não pelas palavras que as pessoas dizem, mas pelas posturas que elas tem com você”, diz Emicida.
Curiosamente, a postura de Mano Brown foi, por muito tempo, um ponto controverso: ao mesmo tempo em que o perfil incisivo era desclassificado pela crítica, tinha um afeto compartilhado com o público que provocava justamente essa reação do Emicida em relação ao Chuck D.
O show era uma aula e a raiva do artista tornava-se um combustível para engrandecer aquele afeto. Tal divergência de percepções sobre Mano Brown tem a ver com um debate que voltaremos mais à frente, sobre segurança pública em São Paulo e com a reação do jornalismo cultural ao rap —e como Racionais MCs mudou as regras do jogo.
Hoje, consolidado como o rapper mais influente do país e ávido (e confesso) estudante da nossa história, Mano Brown ganha um novo papel enquanto apresentador do segundo podcast mais ouvido do Spotify Brasil no ano passado. Como entrevistador, o artista segue com a mesma missão da carreira de rapper: estabelecer um diálogo com a juventude negra.
Quando Brown convida o vereador Fernando Holiday (Novo-SP) para conversar —um dos melhores episódios da primeira temporada—, ele faz um exercício político que vai contra o modo ensimesmado de fazer política do próprio Holiday e traz para todas as pessoas um exemplo de comunicação fundamental, que não finge neutralidade.
O agora entrevistador Mano Brown
Pedro Dimitrow/Spotify
Como Wagner Moura comenta ao ser entrevistado por Mano Brown em outro episódio, trata de “olhar as pessoas com a complexidade que elas têm”. O episódio com o Holiday é muito curioso também porque há uma graça didática, com um sino que toca a cada vez que o vereador critica a direita ou concorda com Brown. É uma tiração, mas que traz uma leveza e lembra rimas que a gente sabe de cor —“Esse não é mais seu, subiu! Entrei pelo seu rádio, tomei, ninguém viu”.
“Eu gostei muito da sua entrevista com o Holiday porque eu olhei ele como eu nunca tinha olhado; sobretudo nesse momento agora, em que eles acham que a gente é uma coisa, a gente acha que eles são outra”, comenta Wagner Moura, “Você pode discordar de tudo que uma pessoa fala, mas quando você olha a pessoa com humanidade, a gente está caminhando para um projeto civilizatório que a gente de alguma forma perdeu no Brasil e no mundo talvez.”
Nesse tom sincero, Brown desvenda vínculos essenciais de cada entrevistado e, no fundo, constrói um podcast sobre pertencimento, em que nada é difícil demais para dizer, tampouco para ouvir. Por lá, passam desde personagens históricos, como Drauzio Varella, Lula, Vanderlei Luxemburgo e Gloria Maria, a novidades da nossa cultura —Gloria Groove, Jojo Todynho, Djonga, Ludmilla…
“Eu faço parte de um movimento que vive seu melhor momento da história. Os melhores compositores, maiores números, arrecadação, dinheiro, profissionais se formando, molecada jovem, de periferia, comprou computador, tem um Mac, a informação chegou e eles trocam informações em rede e a coisa aconteceu”, declara Mano Brown.
“Um movimento minúsculo que nada mais era em 1988 do que uma ação afirmativa. Não existia nada a não ser sonho e uma ideia na cabeça. […] Muitos jovens têm muita fé nisso, no hip hop, no funk, de emergir, de dar uma condição para a família, fazer mágica… fazer o que o sistema não consegue. Eu digo isso porque eles são os formadores de opinião, eles falam com milhões, mais que os políticos, mais que os religiosos. Para muita gente hip hop é religião. E eu percebo que são pessoas que não são ouvidas. Existe um movimento muito vivo, pensante, articulando agora. É uma paixão devastadora que [afirma que] o jovem é útil.”
Da dura Diário de um Detento à inspiradora faixa Sou + Você, Brown sempre foi um professor. Em diversos episódios, Mano a Mano aborda a violência nas décadas de 1980 e 90 nas periferias de São Paulo (no episódio com Emicida, a fome relacionada à forte inflação dos anos 90 também ganha destaque), mas ainda é necessário contextualizar que tipo de violência é essa que atravessou a vida de Brown e foi tema principal do começo da sua carreira.
Em seu doutorado, o jornalista Bruno Paes Manso estudou o “Crescimento e queda de homicídios em SP entre 1960 e 2010” e, segundo ele, os crimes de homicídio a partir de 1975 passaram a ser epidêmicos, crescendo vertiginosamente. “Entre 1960 e 1999, em São Paulo, os coeficientes de homicídios variaram de 5,9 a 59,4 por 100.000 habitantes. Isto significa aumento de 906,8% no período”, afirma o jornalista, na contramão da expectativa da redemocratização do país.
“Os homicídios começam a ser praticados mais intensamente pelos PMs como instrumentos de controle territorial na metade dos anos 1970”, explica o jornalista. Na época, o país vivia dois processos que alimentaram essa urgência pelo controle: o começo de uma recessão econômica gerada pelo governo da ditadura militar, com o consequente aumento de crimes contra patrimônios privados, e a construção midiática da figura do bandido, elencado como inimigo número um do país.
“Os efeitos são diferentes dos esperados pelos autores dos homicídios”, continua Paes Manso, “Em vez de controlar os roubos, os homicídios provocam novos homicídios e aumentam a desordem nesses lugares. Em territórios onde as próprias polícias matam ou incentivam o assassinato, o homicídio torna-se uma ação cada vez mais escolhida na mediação de conflitos. O aparecimento dos justiceiros, matadores que se espalham pelos bairros periféricos nos anos 1980, é um dos efeitos do incentivo e tolerância das autoridades ao extermínio. Entram em funcionamento círculos de violência, estimulados pela prática da vingança, acionando mecanismos onde os próprios homicídios levam a novos homicídios.”
Em certo momento da conversa do episódio com Emicida, Mano Brown revela que fora chamado para depor por conta de letras do disco Raio-X do Brasil (1993). “Na época, eu só sabia fazer rap falando dessas coisas”, diz. “Mas você acha que no momento cabia [falar de] outra coisa?”, pergunta Emicida.
Se em 1960, os homicídios acontecem majoritariamente dentro das casas, decorrentes de conflitos familiares, em 1980 este cenário já se transformou na cidade.
“Os homicídios nos anos 1980 e 1990 vão se caracterizar justamente por serem crimes que ocorrem nas vias públicas, sempre em proporções acima dos 60%, com os corpos das vítimas amanhecendo nas ruas depois de serem alvejados de noite e de madrugada”, explica Paes Manso.
Ainda segundo o autor, as vítimas eram em maioria homens, jovens e moradores das periferias da região metropolitana de São Paulo. O afeto e a identificação do público com as rimas do Racionais MCs são embasados em um modo de vida (e de morte) da época. Não se trata de uma particularidade do Mano Brown: todo jovem paulistano dos anos 1980 que passava dos 25 anos começava a se declarar e se entender no mundo como mais um sobrevivente.
Na crítica musical, Brown sempre foi visto com olhos brancos demais. Criou-se uma fama de marrento, difícil e perigoso, um olhar carrega que dois atravessamentos sociais: primeiro, o racismo, o qual estereotipa pessoas negras como violentas; segundo, o território de quem fala.
Ainda que a violência tenha se alastrado de forma epidêmica em São Paulo, não foram todos os territórios da cidade que se tornaram alvo. Quase a totalidade da violência homicida estava concentrada nas periferias. Isso significa que não foi toda a cidade que cresceu vendo os corpos nas ruas pela manhã, ainda que toda a cidade soubesse que era exatamente isso que acontecia nas periferias.
“Aqueles a quem o ‘extremismo’ de muitos rappers incomodava profundamente esperavam por discursos mais cordiais, que imprimiriam positividade ao gênero”, escreve Roberto Camargos, doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia, em seu livro Rap e Política. “Um maniqueísmo à flor da pele aparece, de modo indisfarçável, em artigo da Folha de S. Paulo [de 1996]: “O Brasil também tem seus ícones do rap do bem. Se os Racionais MC’s seduzem com letras ‘conscientes’, mas pecam pela postura radical, existe uma rapaziada pronta para mandar boas mensagens em forma de rap”.
“Afinal, o que seriam essas boas mensagens? O que seria esse ‘rap do bem’?”. Camargos continua: “Embora o capital cultural dos rappers fosse compartilhado como gosto musical por setores relativamente amplos da sociedade — a ponto de romper barreiras de classe, cor, gênero —, as críticas que incidiam sobre eles visavam não só desconstruir o rap, como todas as práticas e valores que o sustentavam. As denúncias feitas, os valores propagados, a alusão aos não lugares da cidade e os posicionamentos afirmativos, fossem eles de classe social, etnia, gênero ou local de moradia, foram tachados de toscos, de rudes, de não cultura.”
A repulsa às manifestações culturais populares do país não estão cristalizadas no passado. Estão presentes até hoje nos palcos de festivais, nas rádios, no investimento em artistas e ainda nas críticas. Mas também hoje, em outro contexto social e político, entendido como o rapper mais influente da nossa história, Mano Brown constrói um espaço de reconhecimento, formação e visibilidade. Mano a Mano é uma série de conversas surpreendentes, que são muito mais sobre ouvir do que sobre falar.
Thaís Regina
Thaís Regina é repórter de cultura e sociedade, com colaborações na Time, Elle Brasil, UOL, Elástica, Glamour, Monkeybuzz, Noize e Revista Balaclava. Entre reportagens, pesquisas musicais e roteiros de ficção, acredita que o sabor de boas histórias está nos seus personagens.
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