MÚSICA

Rosalía e seu flamenco pop volta em novo disco, Motomami

Divulgação

MOTOMAMI

Como Rosalía transformou o flamenco em pop no século 21

Cantora e compositora catalã lança o álbum Motomami apoiada num status de popstar que conquistou com a soma de talento, perseverança e vontade de arriscar

Luccas Oliveira
Luccas Oliveira

Rosalía, que lança nesta sexta-feira o álbum Motomami, é responsável por levar o flamenco às gerações Y e Z. O complexo gênero espanhol tricentenário vivia há tempos uma fase muito mais ligada à tradição e ao turismo do que exatamente À renovação. Até surgir a cantora e compositora catalã e chacoalhar a música pop com o disco El Mal Querer, em 2018.

Nele, Rosalía fez um encaixe perfeito entre a visceralidade do flamenco e o apelo comercial do pop eletrônico, com sintetizadores, beats, samples, vocais aditivados com Auto-Tune e mais.

A catalã Rosalía está ruiva no clipe de Chicken Teriaky

Veja o clipe de Chicken Teriyaki

Música faz parte do disco Motomami

Mas o que está por trás da disposição de Rosalía em unir tradição e inovação? E por que escolher o flamenco, exatamente? A Tangerina tenta resumir esta história. Vamos por partes.

A origem do flamenco pop de Rosalía

Rosalía, hoje com 29 anos, cresceu na minúscula Sant Esteve Sesrovires, na região metropolitana de Barcelona. Acontece que em 1989, três anos antes de Rosalía nascer, a montadora de carros S.E.A.T., a maior da Espanha, abriu uma unidade na cidade. Isso acabou transformando a região num polo industrial e quadruplicou a população —que agora é de 7.800 pessoas, para se ter noção do quão pequena era a cidade.

Enfim, grande parte dos trabalhadores vieram do sul da Espanha, da região da Andaluzia, o berço do flamenco. Ou seja, os amigos de infância de Rosalía ouviam o ritmo por conta dos pais, enquanto ela, em casa, era impactada por Queen, Bruce Springsteen e Bob Marley.

Em entrevista ao jornal El Mundo, Rosalía lembrou de um episódio que viveu aos 13 anos. A adolescente estava num parque com os amigos quando o sistema sonoro de um dos carros estacionados tocou uma música de Camarón de la Isla, ídolo do flamenco. “Minha cabeça explodiu”, contou ela ao El Mundo.

Capa de Motomami, novo disco de Rosalía

A capa do disco Motomami, lançado nesta sexta-feira

Por que o que Rosalía faz é diferente?

Entenda que o flamenco, tradicionalmente, é uma questão hereditária na Espanha. A origem do gênero é um grande debate, mas sabe-se que foi na Andaluzia que ele floresceu, por conta da mistura étnica da região. O sul espanhol é separado do norte da África (de maioria muçulmana) por uma estreita faixa de mar Mediterrâneo. Por mais de 600 anos, a região foi povoada por árabes, judeus, romenos e cristãos.

O flamenco veio deste caldeirão de misturas e se caracteriza pelo canto dramático, pela percussão baseada nas palmas e pelo violão característico —o instrumento traz as cordas mais próximas do tampo, para facilitar o violonista a golpeá-lo, transformando-o também num elemento percussivo.

A sonoridade como um todo é extremamente complexa quando comparada a sons “pop”, por assim dizer. Métricas, melodias e harmonias têm variações incomuns, que demandam muito mais tempo para aprender. Por isso, os tradicionalistas dizem que o flamenco é uma espécie de idioma, que se aprende mais facilmente quando você cresce em um ambiente familiar que conheça o gênero.

Capa do clipe de Catalina, da Rosalía

Ouça Catalina, faixa do primeiro disco de Rosalía

Los Ángeles é essencialmente um álbum flamenco

Não era o caso de Rosalía, cujos pais, como falamos, estavam mais dispostos a ouvir Bob Marley, Queen e Bruce Springsteen. A família não tinha ligação direta com a música. Mas a então adolescente botou na cabeça que queria aprender a cantar flamenco. E se esforçou para isso. Fez aulas de dança flamenca e engoliu discos de Camarón de la Isla com Paco de Lucía. A dupla já tinha agitado o flamenco em 1979, com um disco que incorporou o baixo elétrico e foi atacado como Bob Dylan quando levou a guitarra ao folk. Rosalía causaria outro terremoto parecido 40 anos depois.

De mestre para aprendiz

Rosalía também não tinha qualquer receio de se arriscar. Ela chegou a passar por uma cirurgia nas cordas vocais depois de passar a adolescência cantando flamenco tradicional sem um treinamento adequado. O procedimento exigiu um ano de molho, durante o qual Rosalía estudou e entendeu que precisava de uma rotina regrada para fazer aquilo.

Foi aí que ela correu atrás de José Miguel Vizcaya, cantor e criador de um método pioneiro de ensino do canto flamenco na Catalunha. Foi ele quem ensinou Rosalía a fazer melismas —uma técnica vocal que leva a mesma sílaba a diferentes notas durante o canto, dominada por nomes como Mariah Carey e Whitney Houston. Entenda com Rosalía na música abaixo, do primeiro álbum dela:

Foi assim que Rosalía aprendeu a ter um bom ouvido para música. Afinal, para fazer melismas, cantores precisam dominar a estrutura das notas de maneira exemplar. Este processo foi fundamental para Rosalía, futuramente, participar da produção das próprias músicas e, assim, formatar seu flamenco pop do jeito que queria. Isso somado, claro, a uma disciplina e vontade de aprender acima da média, como Vizcaya contou ao New York Times.

Sede pela inovação

Resumindo, não foi por acaso ou modismo que Rosalía chegou ao flamenco. É uma paixão que virou objetivo artístico e profissional. Já treinada, ela lançou seu primeiro disco de estúdio, Los Ángeles, em 2017, quando tinha 24 anos. É, essencialmente, um álbum de flamenco, com letras e melodias tradicionais ao gênero. A diferença é a produção, assinada com Raül Refree, um pianista clássico que decidiu largar tudo para fundar uma banda punk e, depois, virou um importante produtor em Barcelona. Eles trocavam figurinhas que iam além do flamenco e incluíam folk americano, reggaeton, Frank Ocean e James Blake.

Rosalía e o britânico James Blake

Ouça Barefoot in the Park, de Rosalía e James Blake

Britânico era uma referência para a catalã

Acontece que, enquanto estudava flamenco com Vizcaya, Rosalía usava sua voz, que vai do granulado ao aveludado num intervalo de segundos, para ganhar dinheiro: cantava em tablados de flamenco, bares de jazz, eventos de hip hop, casamentos, restaurantes, comerciais… O ecletismo e a vontade de não seguir caminhos definidos fazem parte, até hoje, da arte da catalã.

El Mal Querer: o divisor de águas

Tudo isso desaguou de forma brilhante em El Mal Querer, o álbum que Rosalía lançaria em 2018, um ano depois de Los Ángeles, e que definiria o tal flamenco pop do qual estamos falando. A ideia inicial era encaixar os melismas que dominava em batidas essencialmente dançantes.

Los Ángeles já tinha rendido uma indicação ao Grammy latino de artista revelação, então alguns holofotes rondavam o nome de Rosalía. O match perfeito veio no encontro com o produtor espanhol El Guincho, que tinha base na música eletrônica e já trabalhara com a islandesa Björk. Samples e produção vocal são suas especialidades, que encaixaram perfeitamente com as ideias de Rosalía. Ela buscava um álbum centrado na voz, que mostrasse seu ecletismo e brincasse com harmonias.

El Mal Querer, que viraria um fenômeno mundial, foi quase todo gravado de maneira artesanal, na casa de El Guincho, e 100% independente. Eles costuraram juntos as composições e produções que renderiam um Grammy e seis Grammys latinos. O diferencial, claro, era o tal flamenco pop.

Para ser mais exato, o domínio de Rosalía em misturar elementos urbanos, contemporâneos, modernos, com a tradição. Algo que ela só conseguiu por centralizar em si e ditar todos os aspectos da criação. Ou seja, provavelmente, só foi possível por Rosalía ser, à época, uma artista independente.

O momento certo

El Mal Querer saiu já em meio à onda latina do reggaeton, num momento em que a indústria pop estava menos resistente a letras cantadas em espanhol. O disco transmite um certo desespero, o drama visceral do flamenco, e uma ideia de libertação que as palmas percussivas estimulam. Tudo isso conduzido pela versatilidade vocal de Rosalía e o samples escolhidos por ela e El Guincho —a faixa BAGDAD (Ch. 7: Liturgia) tem trechos de Cry Me a River, de Justin Timberlake, mas é uma música de flamenco.

Rosalía na capa de Bagdad

Assista ao clipe de BAGDAD (Ch. 7: Liturgia)

Rosalía mistura Justin Timberlake e flamenco

Para fechar a fórmula de sucesso, faltava uma equipe de divulgação robusta. Foi aí que entrou em cena Juanes, o astro colombiano queridinho do Grammy Latino. Ele viu um show de Rosalía e se apaixonou, antes mesmo de El Mal Querer. Na época, Juanes investia numa empresa de entretenimento, batizada de Lionfish. O objetivo dela é encontrar artistas “bilíngues, biculturais, que possam facilmente se tornar fenômenos globais”, como contou à Vanity Fair espanhola.

Um deles era ninguém menos que o colombiano J Balvin, um dos maiores astros do reggaeton, que viria a lançar um hit com Rosalía, Con Altura, em 2019.

A empresa de Juanes assinou com Rosalía em janeiro de 2018, e o resto é história. Desde então, a cantora que ajudou a transformar o flamenco em pop no século 21 só pavimentou, cada vez mais, o próprio estrelato.

Polêmicas, claro

Nem tudo são flores. Ou, como diria aquele sábio, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Na Espanha, Rosalía já foi acusada por conservadores do flamenco de ser um produto moldado pela indústria para satisfazer desejos do mercado —vale lembrar que ela começou a carreira do zero, ainda adolescente.

Ciganos espanhóis de origem romena também foram para cima dela por usar palavras do dialeto caló em suas letras, além de adotar sotaques da Andaluzia.

Enquanto isso, catalães reclamam que Rosalía não usa seu palco para defender a causa separatista. Ela já foi atacada até nos Estados Unidos, por uma suposta apropriação, já que ganhou o Grammy de melhor álbum latino mesmo sendo europeia.

Capa do clipe de SAOKO, de Rosalía

Assista ao clipe de SAOKO

Música foi uma dos primeiros singles do disco Motomami

O fato é que Rosalía é o maior produto de exportação da música espanhola desde Julio Iglesias. Motomami, o disco que chega ao streaming nesta sexta-feira, traz a cantora indo ainda mais longe em suas pesquisas sonoras. Ela explora também reggaeton, bolero e outros ritmos latinos. Isso com a participação do popstar The Weeknd, samples de James Blake e produção de Pharrell Williams.

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Luccas Oliveira

Luccas Oliveira

Luccas Oliveira é editor de música na Tangerina e assina a coluna Na Grade, um guia sobre os principais shows e festivais que acontecem pelo país. Ex-jornal O Globo, fuçador do rock ao sertanejo e pai de gatos, trocou o Rio por São Paulo para curtir o fervo da noite paulistana.

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