Fotos: Daniel Ogren/Wikimedia Commons e Divulgação/WB Games / Montagem: Tangerina
O novo jogo da franquia Harry Potter tenta se distanciar da autora J.K. Rowling e de seu posicionamento transfóbico. Mas é possível fazer um jogo sobre uma visão de mundo mágico sem o legado da criadora deste universo?
A franquia Harry Potter é uma das grandes referências da cultura pop atual desde o lançamento de Harry Potter e a Pedra Filosofal. Por mais de duas décadas, viver no universo criado pela escritora J.K. Rowling parece ser o sonho de muitos fãs, que tentam realizá-lo por meio desses produtos e espaços derivados da franquia. Por isso, chama a atenção o fato de que Hogwarts Legacy, um jogo RPG de ação em mundo aberto que promete entregar o que os fãs sempre sonharam, não seja recebido com o mesmo entusiasmo entre o público.
Alguns anos atrás, era difícil acreditar que algo abalaria o amor praticamente incondicional do público pelos bruxinhos britânicos. Menos ainda que seria a própria autora da série, J.K. Rowling, a fazer isso. Porém, desde 2020, quando questionou uma reportagem que usava a expressão “pessoas que menstruam” em vez de “mulheres”, com o objetivo de incluir homens trans, Rowling vem repetidamente usando suas redes sociais para atacar mulheres trans e ativistas.
Não há nenhuma sutileza e nem ambiguidade nos posts da autora, que afirmam coisas como não acreditar na ideia de gênero e considerar preocupante os efeitos do movimento trans na educação de crianças, um posicionamento compartilhado por pessoas que acreditam que o movimento LGBTQIA+ é uma ameaça para crianças.
É claro que essa agressividade foi notada pelo público, que se dividiu entre reações muitas vezes conflitantes, como continuar consumindo a franquia invocando a separação entre artista e obra, repudiar publicamente o universo de Harry Potter convocando boicotes, ou ainda buscar a ressignificação da série por meio de apropriações, paródias e fanfics. De qualquer forma, a figura de J.K. Rowling virou fonte de desconforto tanto para o público quanto para as empresas e marcas que se associam a Harry Potter de alguma forma.
O Avalanche Software, estúdio que cuida do desenvolvimento de Hogwarts Legacy, foi pego de surpresa no meio desse furacão e se viu em uma situação complicada. E a estratégia que o estúdio está adotando para lidar com isso é tentar a difícil, talvez até impossível, separação entre autor e licenciado.
Durante a campanha de divulgação do jogo, o Avalanche Software tem focado em repetir que a autora tem pouco a ver com o jogo. De um vídeo de bastidores que apresenta apenas desenvolvedores, sem menção à autora, ao lançamento de um extenso questionário sobre o jogo, passando também pela divulgação de que ele terá opções para a inclusão de pessoas trans, cada pronunciamento público envolvendo Hogwarts Legacy parece ser uma oportunidade para tentar se afirmar como um produto muito diferente do posicionamento transfóbico de Rowling, mas ainda assim fiel ao seu universo.
Como é possível ver, principalmente no vídeo dos bastidores abaixo, a empresa tenta equilibrar o respeito aos elementos já conhecidos e amados pelos fãs com o distanciamento da autora ao repetir que esta é uma história nova, sem ligação com Rowling e ambientada em uma época bem anterior aos acontecimentos dos livros e filmes de Harry Potter.
Vídeo de bastidores de Hogwarts Legacy
Estúdio quer reafirmar distanciamento de J.K. Rowling
Porém, é difícil dizer se essa é uma boa estratégia. Por um lado, apesar de valorizar a fidelidade a certos elementos-chave, a relação entre público e produtos culturais nunca fica limitada pela visão dos autores. Depois que uma obra vai para o mundo, o público pode apreciá-la como quiser e por isso, apesar de Rowling, existem pessoas LGBTQIA+ que amam Harry Potter e se relacionam com este universo a partir das próprias experiências.
Desse ponto de vista, a separação entre autor e obra pode fazer sentido, já que os fãs dão significados pessoais ao universo de Harry Potter. Por outro lado, é impossível apagar totalmente a visão de mundo da autora de sua obra, mesmo quando reapropriada.
Um exemplo disso é o fato de que, além da transfobia de J.K. Rowling, outros aspectos controversos de Harry Potter têm sido apontados pelos fãs, como o uso de de estereótipos racistas e xenofóbicos na caracterização de bruxos não-britânicos e o antissemitismo na figura dos duendes. Esses pontos são cruciais na caracterização da franquia, e, por isso, acabam aparecendo mesmo em produtos sem envolvimento direto da autora.
Isso aconteceu com o próprio Hogwarts Legacy, cuja apresentação mais recente foi bastante criticada por apresentar a trama do jogo como uma conspiração dos duendes para “destruir a comunidade bruxa” em que os estereótipos antissemitas aparecem ainda mais destacados.
Gameplay de Hogwarts Legacy
Jogo tem lançamento previsto para 2022
Em produtos licenciados, como o jogo, a separação entre autor e obra é ainda mais complexa pela questão mercadológica: mesmo que Rowling não seja parte atuante do desenvolvimento, ela ainda é remunerada por todo produto envolvendo a marca Harry Potter. A separação entre artista e obra pode valer individualmente, na experiência de cada fã, mas é difícil de se sustentar quando o assunto é dinheiro.
Para deixar o debate ainda mais complexo, outro ponto importante a se considerar é o de que videogame é uma mídia coletiva, ainda mais em jogos de grande orçamento como Hogwarts Legacy. Obviamente, muitas pessoas na equipe de desenvolvimento não concordam com o posicionamento transfóbico de J.K. Rowling. Porém, o problema da discriminação de gênero na indústria de games, infelizmente, é muito maior que a autora, e o jogo é a prova disso.
O principal game designer do projeto era Troy Leavitt, um conhecido apoiador do Gamergate, movimento de cyberbullying e assédio contra profissionais mulheres e apoiadores de causas sociais na indústria de games, e mantém um canal repleto de conteúdo antifeminista. Embora o desenvolvedor tenha deixado o projeto após a pressão do público, é difícil de acreditar que ele é o único na equipe a ter esse tipo de posicionamento, ainda mais considerando o machismo da indústria.
Hogwarts Legacy terá lutas contra criaturas mágicas
Divulgação/WB Games
Não existe resposta definitiva para a questão da separação entre autor e obra porque, como expliquei aqui, ela passa por experiências muito pessoais. A identificação com produtos culturais é um processo mais emocional que racional. Pessoalmente, eu creio que reduzir o ativismo social a um guia de ‘consumo consciente’, distribuindo selos de ‘problemático’ ou ‘não problemático’ para cada obra, é uma solução pobre e moralista para a questão.
Porém, considerando questões de mercado como o impasse em torno de Hogwarts Legacy, arrisco afirmar que a separação entre autora e produto comercial é sim impossível, ainda mais na indústria de games que possui um vergonhoso legado de machismo, racismo e transfobia.
E se não conseguirmos resolver este problema só usando estratégias individuais, como o boicote, é preciso pelo menos encará-lo de frente. Espero que as reviews do jogo, que sai no final de 2022, não deixem de mencionar o posicionamento transfóbico de J.K. Rowling e a participação de Troy Leavitt em seu desenvolvimento.
Beatriz Blanco
Beatriz Blanco é doutoranda em comunicação, pesquisa videogames e questões de gênero no Brasil, e é professora na área de design e jogos digitais. Também escreve e produz podcasts sobre games e cultura pop. Na Tangerina, assina a coluna Cultura Gamer, que faz a ponte entre o universo gamer e esse mundão aqui fora.
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