O LADO FRUTA DA FORÇA

JK Rowling

Fotos: Divulgação. Montagem: Tangerina

O Lado Fruta da Força

Quem gosta de Harry Potter é cúmplice da transfobia de J.K. Rowling?

Mais uma vez, a criadora do Mundo Bruxo vai às redes fazer comentários transfóbicos. É possível "separar o autor da obra e continuar fã do universo Harry Potter?"

Christian Gonzatti
Christian Gonzatti

Para muitas crianças e adolescentes LGBTQIA+, o universo mágico de Harry Potter foi um refúgio imaginário das violências cotidianas. Lá pelos meus 11 anos, eu comecei a me tornar fã do Mundo Bruxo criado por J.K. Rowling. Por me identificar com magia, bruxas e toda a fantasia que envolvia Hogwarts, mas mais do que isso, via também na situação de Hermione Granger uma metáfora para como eu era tratado por ser um menino afeminado.

Na história, a personagem era discriminada por ser “sangue-ruim”, termo para se referir a pessoas que são bruxas, mas têm pai e mãe que não são bruxos. No entanto, ela era, segundo Remus Lupin, a bruxa mais inteligente da idade dela. Minha principal referência nerd não era um garoto nerd, mas uma garota. 

Já como pesquisador, li e ouvi muitos relatos de pessoas LGBTQIA+ que desenvolviam a mesma leitura sobre o universo de Harry Potter. Passei a investigar, então, como a saga ficcional estimulava pessoas a lutarem contra o preconceito e a desigualdade. 

Nesse percurso, descobri a Harry Potter Alliance, uma organização sem fins lucrativos, colaborativa e administrada principalmente por fãs de Harry Potter, fundada por Andrew Slack em 2005, para chamar a atenção para as violações dos direitos humanos. Atualmente, a iniciativa passou a se chamar Fandom Forward, pois se expandiu para incluir membros de vários fandoms. 

E agora prepara o cérebro que vem aquele parágrafo mais acadêmico. Sou toda acadêmica, sim. Também localizei uma série de estudos científicos sobre o tema. Discutindo  a representação da escola nas histórias de Harry Potter como veículo para a importância do espaço educacional e para o desenvolvimento do conhecimento e da cultura. Analisando a possibilidade de uso das narrativas do mundo bruxo para o ensino de direitos humanos. E um estudo que demonstrou como algumas  crianças e jovens podem melhorar as suas atitudes com grupos estigmatizados (gays, imigrantes e refugiados, por exemplo) ao lerem as histórias de Harry Potter. 

Inspirado por tudo isso e por algumas mensagens que eu já havia visto circular em protestos feministas nos Estados Unidos, eu fiz um cartaz para participar das manifestações contra Jair Bolsonaro nas eleições de 2018.

Chris Gonzatti

Christian Gonzatti nas manifestações contra as eleições de Jair Bolsonaro, em 2018

Acervo pessoal/Christian Gonzatti

E foi um sucesso nas redes sociais. Saí até no  BuzzFeed. E o que eu achei mais importante: o maior fansite de Harry Potter da América Latina, o Potterish, publicou um texto com a minha foto se posicionando contra Jair Bolsonaro por todas as suas falas contra mulheres, pessoas pretas e LGBTQIA+. 

O manifesto do portal rendeu, inclusive, um artigo científico no qual eu e um colega pesquisador, Felipe Viero, professor da UFOP, analisamos a posição antifascista de fãs de Harry Potter. 

Mas aí veio o balde de água fria. Pra muita gente. 

J.K. Rowling, a criadora de Harry Potter, tornou pública a sua posição transfóbica. Esse texto não é pra mostrar tudo o que ela já fez que colabora para posições anti-pessoas trans. Se você é do time da “passada de pano” e acha que o máximo que ela fez foi um “inocente” texto defendendo a existência do sexo, eu lamento te informar, mas você tá caindo em uma cilada. A autora já divulgou uma loja que vende adesivos com mensagens transfóbicas —“transativismo é misoginia”, por exemplo— e tem um currículo extenso de atos que estimulam a transfobia e a desinformação sobre pessoas trans. A mais recente, na última segunda-feira (7), foi criticar um projeto de lei escocês que facilitaria o reconhecimento de gênero.

Surgiu, então, uma ruptura no fandom LGBTQIA+ e de pessoas trans-aliadas em torno de Harry Potter: de um lado, um grupo que defende a possibilidade de separar a autora e a obra, do outro quem entende que continuar consumindo qualquer coisa do Mundo Bruxo de J.K Rowling é ser conivente com a sua transfobia. 

E, também, existem outros lados nessa discussão que não envolvem pessoas que se entendem como trans-aliadas: grupos de TERFs (o acrônimo significa Transgender Exclusionary Radical Feminist —em português, algo como Feminista Radical Trans-Excludente). As TERFs passaram a ver a autora como uma heroína; os famosos “nerds tóxicos” que resumem as reclamações sobre Rowling a “mimimi”; e ainda existe a galera que tá boiando diante da situação, nem sabe muito bem o que é transfobia, e segue adorando Harry Potter. 

Nesse contexto, eu me encontro quase como um ex-fã da série, tendo em vista que perdi completamente a empolgação que eu tinha na adolescência e meu entusiasmo para o lançamento de “Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore”, próximo filme do universo de Harry Potter, é quase nulo. Mas isso sou eu, no plano individual. 

Nesse contexto, continuar consumindo Harry Potter faz de uma pessoa transfóbica? Estamos deixando J.K. Rowling mais rica? “Apagar” Harry Potter é o melhor caminho para combater a transfobia? 

Escrevo aqui como um pesquisador de cultura pop, gênero e sexualidade, como uma pessoa que estuda temas em torno da indústria cultural há quase dez anos, publica sobre o tema em revistas científicas e é um ativista LGBTQIA+. Mas falo também de um espaço de privilégio: sou um homem, branco e cisgênero. O resultado de como entendo essa situação não busca ser uma Verdade, dessas que se consideram infalíveis, mas uma posição construída a partir desses lugares apontados.  

A primeira questão que eu quero abordar: “é possível separar autor e obra?”. Sem malabarismos, vou direto ao ponto: não há consenso sobre o assunto. E ciências sociais não são ciências exatas. O novo livro da socióloga francesa, Gisèle Sapiro, Peut-on dissocier l’œuvre de l’auteur? (Podemos separar a obra do autor?) trata da complexidade dessa questão e não dá uma resposta definitiva, por exemplo. Uma resenha sobre ele pode ser lida aqui

Entra também em pauta a questão de estar “dando dinheiro para transfóbica” ao consumir algo de Harry Potter. Também vou ser direto: comprar um chaveiro de cinco pila de Harry Potter não faz diferença para J.K. Rowling. A mulher já foi fucking BILIONÁRIA. Ela não precisa de mais dinheiro. 

Tem também quem defenda que “mencionar” Harry Potter é colaborar para que a série tenha mais relevância e não seja esquecida. Não há como “esquecer” ou “apagar” Harry Potter. Acho muito nobre e lindo quem milita por isso por considerar a existência de pessoas trans mais importantes que bruxos voando em vassouras. Mas assim, não vai funcionar. Talvez quando o mundo ou a sociedade como conhecemos acabar. Aí sim.

Harry Potter tem ao seu lado um conglomerado transmidiático gigantesco. Há uma máquina capitalista bilionária da indústria cultural investindo na visibilidade da série. Além disso, pra dez pessoas aliadas LGBTQIA+ não falando sobre Harry Potter, temos outras cem falando que ignoram completamente as falas da J.K Rowling e outras problemáticas do universo. Já viram o tamanho dos canais dedicados a Harry Potter? Os perfis no TikTok? Tem muito, mas muito engajamento orgânico em torno desse universo na cultura pop. 

Mais: Harry Potter tá potencialmente articulado à memória de uma geração. Até mesmo em Cuba, que possui um fechamento para a cultura anglófona-estadunidense, há uma peça de teatro que se inspira em Harry Potter. 

Harry potter

Foto do professor da UFPE, Thiago Soares, no Hall do teatro Raquel Revuelta, em Vedado, Havana

Acervo pessoal/Thiago Soares

Algo como Harry Potter não vai ser apagado através do “não falar sobre”. No entanto, eu acredito que é possível usar o universo de J.K Rowling contra ela. “Hackear” a série me parece o melhor caminho para combater a transfobia. 

Mas o que seria “hackear” a série? 

Comprar produtos de fãs, compartilhar e endossar as fanfics e fanarts com headcanons LGBTQIA+ e críticas à transfobia. Não deixar, também, de apontar tudo o que a autora fez de transfóbico. É sobre inserir ruído no espaço simbólico em torno de Harry Potter. 

harry potter

Fanart de Damien Alexander

Reprodução/Instagram/damianimated

“Hackear” a série também é sobre trazer as interpretações periféricas da obra para o seu centro através das plataformas digitais, como conteúdos que apontam o racismo, o antissemitismo e outros problemas das histórias são importantes para ajudar a formar pensamento crítico. 

Mostrar como personagens da obra poderiam advogar contra a própria J.K Rowling também é um caminho que segue essa lógica.

Meme sobre polêmicas de J.K. Rowling

Foto: Divulgação. Montagem: Tangerina

Existem crianças que estão conhecendo Harry Potter agora através de todo o conglomerado midiático da cultura pop que é maior que qualquer rede de ativismo. Existem pessoas que são fãs e que não sabem o que é gênero, sexualidade, transfobia ou o que J.K Rowling fez.

Eu quero transformar os fãs de Harry Potter, as futuras gerações que vão conhecer a franquia, essas crianças e adolescentes que estão lendo a série agora, em aliados LGBTQIA+.

Se tu acha que chamar toda a pessoa que ainda fala, consome, menciona Harry Potter de transfóbica e bloquear ela vai surtir mais efeito, vai na fé, boa sorte.

Precisamos de estratégia política e entendimento estrutural das redes sociais para gerar transformação na sociedade. Tem pessoa LGBTQIA+ que vive na sua bolha digital e se esquece que a maior parte da população prefere mil vezes sertanejo topzeira a Pabllo Vittar.

Esse texto é uma tentativa de compartilhar a estratégia que eu tenho usado com Harry Potter e promover a reflexão. Não é sobre o plano individual. Se você não suporta mais a série pela transfobia da J.K Rowling, está certíssime em abandonar Harry Potter. 

É isso. Pra fechar com um feitiço: Fora Transfóbikus!

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Christian Gonzatti

Christian Gonzatti

Christian Gonzatti assina na Tangerina a coluna O Lado Fruta da Força, que fala do universo nerd com um olhar bem colorido. Ele preferia ser Mestre Jedi ou o Doutor Estranho, mas a vida só permitiu ser mestre e doutor em comunicação. LGBTQIA+, é criador da plataforma Diversidade Nerd nas redes. Um dos seus maiores sonhos é ser um X-Men e frequentar uma escola para mutantes em que a Lady Gaga seja a diretora.

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