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Pra adolescentes LGBTQIA+ que cresceram cercados por preconceitos, muito sofrimento poderia ser evitado se existissem mais produções como a série que é sucesso na Netflix
Como criança e adolescente LGBTQIA+ que cresceu entre os anos de 1990 e 2000 —nasci em 1993—, pertenço a uma geração na qual representações de meninos gays ainda eram raras em séries teen de cultura pop. Que dirá para quem veio antes de mim! Mas isso muda agora, com Heartstopper, novo sucesso da Netflix.
Quando os gays existiam em alguns filmes que eu amava, como em Meninas Malvadas, de 2004, com o personagem Damian, interpretado por Daniel Franzese, eram reduzidos a um papel coadjuvante, estereotipado e sempre sem um par romântico.
Damian (Daniel Franceze) em Meninas Malvadas
Com o passar dos anos, fomos ganhando alguns personagens que, literalmente, salvaram vidas. Isso porque uma das sensações mais recorrentes entre crianças de gerações mais antigas que estavam crescendo e se entendendo como pessoas LGBTQIA+ era a de se sentirem invisíveis, sozinhas no mundo, como se não houvesse ninguém como elas. E isso nos levava, somado a toda violência que existe na sociedade, a estados traumáticos e até mesmo depressivos.
IMPORTANTE: Os trechos abaixo abordam temas sobre suicídio e depressão. Se você está passando por uma situação assim, ligue para o CVV no número 188. É gratuito e há alguém pronto para te ouvir e ajudar!
Não é à toa que as taxas de suicídio, tentativas e ideação suicida entre jovens LGBTQIA+ são comparativamente maiores que as da juventude em geral. Uma pesquisa desenvolvida em 2018 apenas com pessoas brasileiras deste grupo identificou que 62,5% delas já havia pensado em suicídio.
Eu fui uma delas. Passei por isso durante toda a adolescência em decorrência de uma cultura heteronormativa, masculinista e que fazia com que eu me sentisse invisível. E me lembro até hoje de um dos personagens da cultura pop que literalmente salvou a minha vida: Kurt Hummel, interpretado por Chris Colfer, de Glee.
Beijo de Kurt (Chris Colfer) e Blaine (Darren Criss) de Glee
Divulgação/Netflix
Toda a trajetória do personagem na série fez com que eu percebesse que não estava sozinho, que estava tudo bem ser diferente daquilo que esperavam de mim e que eu poderia encontrar um amor. Bem piegas, eu sei, mas em um mundo onde somos bombardeados com comédias românticas sobre casais cis-heterossexuais, isso fez toda a diferença.
Glee, apesar de ser um produto da sua época na cultura pop, foi inclusive ameaçada de boicote e atacada por grupos conservadores por abordar a adolescência gay de Kurt. Nada de novo sob o sol, né?
Um dos dias mais felizes da minha vida, até hoje, foi quando estava assistindo Glee com minha mãe. Era o episódio do aguardado beijo entre Kurt e Blaine, vivido por Darren Criss. Quando ela sorriu para a cena, eu me senti abraçado e acolhido, foi como se ela tivesse me entendido, apesar de todas as frases homofóbicas que ela reproduziu durante o meu crescimento.
Foi aí que eu pensei: se ela sorriu pelo afeto entre dois personagens gays, por que não iria ficar feliz se isso acontecesse com o próprio filho dela?
Esse momento foi um ponto de virada no final da minha adolescência e a partir daí passei a assumir para mim mesmo que sim, um dia eu sairia do armário.
Assistindo Heartstopper —para conhecer mais sobre o elenco e os personagens da série baseada em uma HQ você pode ler esse outro texto da Tangerina— eu só pensava nisso: quanto sofrimento teria sido poupado se eu e tantas outras pessoas LGBTQIA+ tivéssemos assistido essa série na nossa adolescência?
Ela nos daria repertório para mostrar as nossas amizades e familiares que não há nada de errado em ser lésbica, bissexual, gay, trans. Faria a gente entender que nós podemos viver toda a experiência de ter um “crush” que nos corresponde na adolescência e não precisamos nos contentar com o “boy discreto e fora do meio”.
O casal Tara Jones (Corinna Brown) e Darcy Olsson (Kizzy Edgell) de Heartstopper
Divulgação/Netflix
Mostraria que não somos as únicas pessoas LGBTQIA+ do mundo, que verdadeiros amigos nos ajudam a enfrentar o bullying, que você pode ser LGBTQIA+ e ser um bom esportista, ou ser heterossexual e não gostar de esportes, que o mundo pode ser muito mais do que as caixinhas em que nos colocam. Mostraria que o “B” da sigla não é de biscoito, mas de bissexual —também poderia ser de “bicha, eu tô passada com a fofura do Charlie e do Nick”— (casal protagonista da série).
Heartstopper cumpre um papel junto com outras séries, como Sex Education, que o nosso ensino ainda tem lutado para abraçar: o ensino sobre gênero e diversidade.
Yasmin Finney como Elle Argent, uma adolescente trans, em Heartstopper
Se ainda não assistiu, corre pra Netflix pra ver!
Christian Gonzatti
Christian Gonzatti assina na Tangerina a coluna O Lado Fruta da Força, que fala do universo nerd com um olhar bem colorido. Ele preferia ser Mestre Jedi ou o Doutor Estranho, mas a vida só permitiu ser mestre e doutor em comunicação. LGBTQIA+, é criador da plataforma Diversidade Nerd nas redes. Um dos seus maiores sonhos é ser um X-Men e frequentar uma escola para mutantes em que a Lady Gaga seja a diretora.
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