Batman capa especial
Batman

Como Batman e a batmania revolucionaram o cinema de heróis

Batman saiu das HQs pra se tornar um dos heróis mais emblemáticos —e rentáveis— da cultura pop. E continua a redefinir os rumos do cinema

Divulgação/Warner

Bruno Figueiredo
Bruno Figueiredo e Gabi Franco
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Hoje é difícil negar que Batman, criado como entretenimento barato e escape no final dos anos 1930, tornou-se um dos personagens de maior impacto na cultura pop —e no cinema.

Já em seu décimo filme, que estreia nos cinemas nesta quinta (3), o bilionário Bruce Wayne (e seu alter ego de capa preta) está mais próximo do público do que um alien que ganha superpoderes na Terra ou uma vítima de experimentos científicos, e sempre permitiu que os fãs sonhassem em ser aquela figura atormentada e magnética.

Esse desejo foi amplamente explorado no cinema pelo olhar de diretores completamente distintos entre si, que enfatizaram características únicas de um mesmo personagem e mudaram para sempre a forma de se fazer filmes de super-heróis. Foi o que estabeleceram os cineastas Tim Burton e Christopher Nolan. E, agora, Matt Reeves também pleiteia um lugar nesse rol, com seu Batman, que estreia nesta quinta (3).

A marca do morcego

Embora a gente esteja falando de cinema, é importante lembrar que essa história começou nos quadrinhos da editora DC Comics, em 1939, com um personagem criado pra fazer tanto sucesso quanto o Superman, mas com pitadas de elementos do terror gótico de Edgar Allan Poe, a bravura de Zorro, a intrepidez de Fantasma e a exímia inteligência de um Sherlock Holmes.

No ano seguinte, Batman já alcançava o Homem de Aço, vendendo cerca de 1,5 milhão de títulos mensais. Teve sua era de ouro nos anos 1940, sofreu um pouco com a censura aos quadrinhos nos anos 1950 e passou por uma revolução na década seguinte.

Os anos 1960 trouxeram o rock’n’roll, a revolução sexual, as lutas pelos direitos civis e o crescimento da cultura pop, com a popularização do cinema e da TV.  Para continuar a garantir as vendas de gibis, a grande cartada da DC foi criar a série de TV Batman & Robin, de 1966, com Adam West e Burt Ward como os respectivos protagonistas. O seriado reforçou ainda mais a imagem ingênua e satírica da dupla e aumentou exponencialmente a popularidade dos heróis.

Batman 1943

A primeira série do Batman de 1943, dirigida por Lambert Hyller chamada de film serials, que eram filmes divididos em partes, para exibição nas matines de domingo.

Divulgação/Columbia Pictures

Logo, já não bastava apenas ver Batman na TV. Era preciso levá-lo para casa. De bonequinhos a secadores de cabelo, surgia um rentável mercado de licenciamento e merchandising que mudaria para sempre a relação de consumo na cultura pop e a figura do Batman no imaginário coletivo.

Uma pesquisa da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO) divulgada em 2020 coloca o Homem-Morcego como top 3 entre os principais personagens de franquias de licenciamento em todo mundo, ao lado do Homem-Aranha e do Drácula.

Se foi difícil bater as vendas de Superman lá nos anos 1940, isso é fichinha para Batman agora. Hoje em dia, o Morcego deixa o kryptoniano para trás em taxas de licenciamento para vendas globais no varejo, com US$ 494 milhões por ano, contra US$ 277 milhões de produtos do Homem de Aço, segundo o site especializado Licensing Letter. 

O Batman de 1966 é fruto daquele momento. Psicodelia, as cores, música, trejeitos, uniformes, tudo aquilo estava dentro do contexto da década de 1960. Ele é um reflexo daquela época.

Ivan Freitas da Costa

um dos criadores da CCXP, curador da exposição de 80 anos do Batman

“Mas a moda é cíclica. Naquele momento, aquilo fazia muito sentido, mas parou logo em seguida. Nas décadas de 1970 e 1980, ninguém dava atenção para aquela versão do Batman”, completa Costa. 

A virada de Tim Burton

De fato, Batman praticamente desapareceu nos anos 1970 e suas participações fora das HQs se resumiram a séries animadas, tanto solo como com a Liga da Justiça —esta última, sucesso aqui no Brasil com o título de Superamigos. Filmes de ação mais realistas, como O Franco Atirador e Apocalypse Now, é que faziam sucesso nas telonas. E a indústria cinematográfica, como grande parte da sociedade da época, ainda via os quadrinhos como coisa de criança. Ninguém queria saber de filmes de super-heróis. 

Adaptações de quadrinhos tiveram certo destaque só no final dos anos 1970, quando o primeiro filme de Superman, estrelado por Christopher Reeve, fez um grande sucesso. Mas a franquia do Homem de Aço fracassou em sua terceira sequência, em 1987, quando o público começou a demonstrar desinteresse e a qualidade das produções caiu brutalmente. 

Para piorar a situação do Batman, a série de TV dos anos 1960, com seus figurinos extravagantes e onomatopeias, mostrou ter afetado consideravelmente a percepção do Morcego junto ao público. Como resultado desta combinação, não havia grande interesse da indústria cinematográfica no Batman.

O projeto de um filme solo do Homem-Morcego passou pelas mãos de um bocado de gente, do roteirista Tom Mankiewicz (de filmes da série 007 e do Superman de 1979) aos diretores Joe Dante e Ivan Reitman (ambos com uma filmografia que, até então, misturava comédias e terror, sinalizando a direção que procuravam dar ao projeto). Mas a coisa não desencantava.

Batman 1989

Batman (1989) - Tim Burton fez a ponte entre o humor da série de 1966 e os gibis, onde Batman era mais sombrio e cruel e o eterno embate entre o Homem-Morcego e o Coringa dava o tom.

Divulgação/Warner

Michael Uslan —produtor executivo de Batman que comprou os direitos do filme por uma bagatela no final dos anos 1970 e tentou emplacá-lo durante toda a década de 1980— contou em entrevista ao The Washington Post em 2019 que, como o personagem havia se tornado muito caricato no imaginário popular, o projeto precisava de um diretor que pudesse criar um filme sombrio e psicologicamente rico, que atraísse um público mais adulto.

Os ventos mudaram em meados dos anos 1980, quando os produtores se depararam com a estética de Tim Burton, um estilista visual até então mais conhecido pelo longa As Grandes Aventuras de Pee-Wee, de 1985.

“Sei que foi um esforço de equipe —com muitos escritores, designers, atores, músicos e arquitetos brilhantes envolvidos— mas a decisão de contratar Tim Burton como diretor foi o verdadeiro ponto de virada”, explica Andrew Farago, coautor, com Gina McIntyre, do livro: Batman: The Definitive History of the Dark Knight in Comics, Film, and Beyond, também em entrevista ao The Washington Post.

Burton parecia o homem certo para conduzir o Batman de 1989, aquele que pavimentaria a ponte entre o humor na série de 1966 e os gibis, onde Batman era mais sombrio e cruel e o eterno embate entre o Homem-Morcego e o Coringa dava o tom. Era um desafio e tanto.

Um pouco de história

A pegada gótica já estava pincelada em trabalhos anteriores do diretor, mas o público fiel das HQs parecia descrente da capacidade (e das intenções) dele em como proceder com o personagem. Burton era fã da série de 1966, mas queria mergulhar em um clima, tanto visual quanto psicológico, que evocasse a graphic novel O Cavaleiro das Trevas (1983), de Frank Miller. Uma verdadeira encruzilhada.

E aí temos a questão Michael Keaton. O ator, famoso por uma série de comédias, trouxe desconfiança. Ele não era, nem de longe, uma escolha óbvia. Nomes como Mel Gibson, Pierce Brosnan, Charlie Sheen, todos com seus maxilares proeminentes, chegaram a ser cotados na época, mas Burton apostou em Keaton e no que ele representaria.

Além de gostar do trabalho do ator, o diretor conseguia enxergar nessa figura fora do padrão a personalidade dividida que procurava. Para Burton, o filme do Batman seria muito mais sobre Bruce Wayne do que sobre o herói de capa e capuz de morcego.

Essa quebra de expectativas era algo que Burton desejava. Em vez do farsesco, ele preferia a crueza das texturas, dos materiais, das formas e encontrou no designer de produção, Anton Furst, o parceiro perfeito.

Seu Batmóvel é um monstro, anatomicamente exagerado. Sua Gotham City, nas palavras do próprio Burton, é Nova York invertida. Um inferno de metal frio, escuro e preto que brota do chão. Uma cidade verticalizada, que não permite que o sol entre. 

O uniforme do herói é preto, como um vampiro. Era parte importante da dualidade que separava Batman de Bruce Wayne —ao estilo O Médico e o Monstro— e reforçava o aspecto de fábula que permeia os trabalhos de Burton.

Cena de Batman: O Retorno (1992)

Batman: O Retorno (1992) mostrou definitivamente que super-heróis não eram só para crianças.

Divulgação/Warner

O diretor foi ainda mais longe na continuação, Batman: O Retorno (1992). Era mais sombria, visceral, distorcida. A aventura de um perturbado homem-morcego atrás de um homem-pinguim e uma mulher-gato pelas ruas frias, quase em preto e branco, de uma cidade decadente, mergulhada no caos e no medo. As sombras estavam na estética e também no conteúdo.

Burton trazia uma nova roupagem, em consonância com seu tempo. Além disso, resgatou o Batman sombrio de 1940 das garras caricaturescas do Batman psicodélico de 1966. A partir dali, filmes de super-heróis passaram a não ser mais vistos (e produzidos) como coisa de criança.

Além disso, Burton mostrou que era possível fazer filmes pop com a assinatura clara de um cineasta. Seus dois filmes do Batman trazem um burlesco macabro também presente em longas como O Estranho Mundo de Jack e Edward Mãos de Tesoura.

Esse tipo de marca autoral, muito comum no cinema de arte, chegava num dos gêneros mais comerciais de Hollywood, os filmes de super-heróis. Era uma liberdade que poucos tinham, sempre forçados a seguir as regras dos estúdios, praticamente apenas como executores de projetos voltados para a produção de merchandising. É justamente nesse sentido que o Batman de Burton talvez tenha se tornado autoral demais.

“Um dos motivos que circulam para a saída de Tim Burton dos filmes foi, justamente, ele ser sombrio demais. Fazer um bonequinho de McLanche Feliz com o Pinguim babando uma baba escura não é exatamente a coisa mais atraente”, opina Ivan Freitas da Costa. “Daí trouxeram o Joel Schumacher, com aquela multidão de cores que dialogava com a série de 1966. Mas era a década de 1990, então não havia interesse por aquela estética, e os filmes naufragaram.”

Quando a gente pensava que estava tudo indo bem…

Um Batman para o pós-11 de Setembro

Depois de uma série de quatro filmes (que, somados, renderam aos cofres da Warner US$ 1,253 bilhão), o morcego foi forçado a descansar a imagem antes de voltar com uma nova abordagem pelas mãos de Christopher Nolan.

Seu filme mais recente até aquele momento, Insônia (2002), refilmagem do homônimo norueguês de 1997, não chegou a ser um blockbuster. O cineasta também não arrebatou a crítica e público como o longa anterior, Amnésia (2000), recheado de piruetas narrativas, mas que se tornou um cult clássico instantâneo. Mais uma vez, parecia que a Warner apostava em um nome com poucas credenciais, mas uma visão bem definida do que queria fazer com o cruzado de capa.

Ao contrário de Burton, Nolan queria trazer o universo de Batman o mais próximo possível da realidade. Tudo precisava conversar, sem gargalos, com a realidade aqui fora.

Está tudo muito atrelado à questão do 11 de Setembro. Precisamos considerar a questão cultural e histórica do momento pelo qual os Estados Unidos estavam passando.

Rebeca Leite

autora do livro Batman: O Bruce Wayne de Tim Burton e Christopher Nolan

“Ele (Nolan) nada nessa onda que está ligada a um momento muito vulnerável, em questões de segurança, políticas, sociais”, explica Leite. “Tem a ver também com uma necessidade daquela sociedade, naquele momento, da figura de um herói. Mas um herói que fosse plausível. Que não estivesse, necessariamente, dentro de um contexto totalmente sobrenatural e ficcional”, conclui.

No Batman de 1989, temos um status quo estabelecido. Ele sai à noite, nas sombras, para combater bandidos. Mas é um enigma para civis e autoridades, que ainda duvidam de suas intenções. Já na versão de 2005 temos a construção desse vigilante. Tijolo por tijolo, não apenas as razões, causa e efeito, como também os ondes e porquês, algo típico do estilo do diretor e roteirista. 

Um cinema de heróis e autores

“Burton e Nolan se reconhecem e se comunicam na autoralidade, já que são dois autores. São caras que têm uma assinatura muito expressiva, que erram, mas sempre erram indo adiante, ousando, criando sua própria linguagem”, opina a jornalista e crítica de cinema Flávia Guerra. “Os dois têm isso que a gente chama de assinatura, que é a forma como eles lidam com temas às vezes batidos.”

Nolan incorpora no Batman da sua trilogia a figura redentora que os Estados Unidos procuravam. Alguém que saísse das sombras da desesperança e do caos para a luz. Ao contrário do Batman de Burton, que explorava nuances psicológicas ao mesmo tempo em que construía figuras traumatizadas, marginalizadas socialmente.

Essa obra (de Nolan) foi pensada para ser um divisor de águas em relação ao que nós conhecíamos dentro do audiovisual sobre o Batman, e também para gerar esse tipo de impacto no sentido de respeitarmos um filme de herói como um grande filme.

Rebeca Leite

“É a partir daí que começam a surgir esses fenômenos da criação de universos cinematográficos em torno da temática de heróis”, completa a pesquisadora. Segundo ela, foi naquele momento que os espectadores também passaram a consumir esse tipo de produto sem se sentirem “infantilizados”.

Além disso, para Leite, não há como negar a contribuição do personagem para a construção do subgênero de filmes de super-heróis como conhecemos hoje. Sim, não haveria MCU (Universo Cinematográfico Marvel) sem Batman —e, mais especificamente, sem as versões de Burton e Nolan.

Apesar das diferenças narrativas e estilísticas, Nolan bebeu muito na fonte de Burton enquanto produção autoral, praticamente ignorando tudo que Schumacher fez. E foi a visão de Nolan que ditou os caminhos de toda a produção DC que a Warner levaria aos cinemas anos depois, sob a batuta de Zack Snyder.

Tanto O Homem de Aço (2013) quanto o embate de Batman vs Superman (2016), goste-se ou não do resultado final, carregam no DNA a maturidade e as dicotomias que Nolan fez questão de explorar. Numa conexão indireta com Burton, vemos nesses filmes heróis realistas, que chegam perto da linha que os separa dos vilões. 

Se é possível enxergar bastante de Nolan sob as camadas de Snyder no chamado DCEU (o universo expandido da DC nos cinemas), foi porque alguém resolveu apostar na visão de Burton exatos 33 anos atrás. São autores influenciando autores em sua visão sobre o trabalho de outros autores consagrados dos gibis.

O Batman de Nolan se tornou o Batman definitivo. Muito distante da visão fantasiosa das HQs, ele é a justiça, a noite. Tanto que a história se inverteu e toda a produção de quadrinhos começou a se pautar pelo Batman dos cinemas. Hoje, toda uma geração conhece e tem Batman como seu herói preferido por causa dos filmes de Christopher Nolan.

E agora, Batman?

The Batman - Matt Reeves

Batman (2022) dirigido por Matt Reeves. Um herói realista e o resgate do Batman detetive de 1940.

Divulgação/Warner

Seguindo os passos de Nolan, o novo Batman (2022) do diretor Matt Reeves tem como marca principal sua verossimilhança. O que também abre novas possibilidades e abordagens para filmes de super-heróis daqui para frente.

Esqueça a galhofa e a fantasia cósmica do caminho pavimentado pela concorrente Marvel, que dominou o cinema de super-heróis nos últimos anos. Nada de multiversos, personagens alternativos, aventuras espaciais ou místicas e heróis engraçadinhos.

Batman mais uma vez se destaca da multidão e vai no caminho contrário da editora concorrente. Bruce Wayne é um jovem imaturo e amargurado em busca de vingança e é muito mais realista e cínico do que qualquer herói contemporâneo. Os temas com os quais ele lida são pesados e ressoam com questões atuais: corrupção, criminalidade, política, uma cidade sem esperança, família, solidão. 

Também herdando um bocado do estilo de Burton, o filme retrata uma Gotham City declaradamente gótica, caótica, com um vigilante imerso em sombras. Pra quem está acostumado à explosão de cores dos Vingadores e a trilha-sonoras cheia de sucessos dançantes, como em Guardiões da Galáxia, pode definitivamente ser um choque. 

Talvez seja a história de super-herói que menos corresponde ao estereótipo de super-herói, apesar de ser um retorno às origens do Batman nos quadrinhos. Vale lembrar que o personagem se aproximava muito dos detetives dos filmes noir e foi lançado no fim dos anos 1930, em um mundo desesperançoso, assolado pela Segunda Guerra e a ascensão do nazifascismo.

Percebe alguma semelhança com o mundo atual? Pois é, o Batman de Matt Reeves e Robert Pattinson capta esse espírito do tempo em um filme que pode, mais uma vez, mudar o modo como se faz cinema de super-heróis.

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QUEM FEZ
Gabriela Franco

Gabi Franco

Editora de filmes e séries na Tangerina, Gabi Franco é criadora do Minas Nerds, jornalista, cineasta, mãe de gente, pet e planta. Ex- HBO, MTV, Folha, Globo… É marvete, mas até tem amigos DCnautas.

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