Divulgação/Marvel
A ideia de universos paralelos —ou “multiverso”, como o conceito ficou mais conhecido— percorreu um longo caminho desde sua provável criação, na década de 1950, até a nova aposta da Marvel, o filme Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, que estreia nesta quinta (5).
Mas não, não foi a Marvel quem inventou o conceito de multiverso nos gibis. E podemos até criar uma “crise nas infinitas terras” com essa revelação, mas o conceito foi utilizado pela primeira vez nas HQs pela editora rival, a DC Comics.
A DC usou a ideia de universos paralelos na década de 1960, em uma história do Flash em que o herói daquele tempo (Era da Prata) encontra o Flash da Era de Ouro (da década de 1950), que atendia pelo nome de Jay Garrick.
Encontro do Flash Jay Garrick com Barry Allen na HQ de 1960
Divulgação/DC Comics
Na Marvel, algo similar aconteceu ainda na mesma década, quando a editora ainda era relativamente nova. O primeiro encontro do núcleo do universo Marvel com outra realidade aconteceu em 1962. Na história, o Tocha Humana, do Quarteto Fantástico, é transportado para um universo alternativo chamado Quinta Dimensão, mais tarde batizada de Terra-1612 do multiverso.
Desde então, o multiverso se tornou o recurso narrativo favorito de roteiristas que precisam consertar alguma falha, renovar seus personagens ou apenas experimentar versões diferentes daqueles medalhões de sempre.
O conceito de multiverso existe sim fora dos gibis e faz parte de uma das últimas teorias elaboradas pelo astrofísico Stephen Hawking (1942-2018) antes de morrer. Hawking, como todo bom cientista, deixou mais questionamentos e hipóteses do que respostas, mas sugeriu que o Universo no qual está localizado a Via Láctea e, por consequência, a Terra, seria só mais um entre muitos.
O físico defendia a hipótese de que esses Universos estariam conectados, e sustentava essa ideia a partir da teoria do Grande Rebote ou Grande Salto (Big Bounce), que os físicos cogitam ter acontecido antes do Big Bang, a explosão que teria dado origem ao Universo.
Segundo o Big Bounce, o Universo seria uma matéria densa que se expande e contrai o tempo todo. Como resultado desde constante movimento, teria surgido o Big Bang.
Mas se ele se contrai e expande continuamente, quem pode dizer que não houve outros Big Bangs antes do nosso? Ou ao mesmo tempo? Ou posteriores? Com outros Universos e planetas e realidades? Lembrando que tudo são teorias, ou seja, estudos de possibilidades.
A ideia, essencialmente, é que, em uma outra realidade, existiria um outro você que, ao tomar uma decisão diferente em algum momento, acaba se tornando um você completamente diferente, em um mundo radicalmente diverso do nosso.
“Mundos paralelos completamente diferentes existem ao mesmo tempo em que existem diferentes domínios da existência, e todos eles coexistem”, explica a física Carol Pimentel, que também é editora de HQs. “Ou seja, qualquer coisa e tudo pode acontecer dentro deles ao mesmo tempo! Sem dizer que eles podem causar destruição total uns dos outros”.
“Imagine que você pudesse caminhar em direção a um mundo idêntico ao nosso, exceto que o céu neste novo local é amarelo em vez de azul. No mundo amarelo, você não veria mais o céu azul do seu antigo lar e suas ações nesse novo mundo impactariam a todos os habitantes de lá”, explica Pimentel.
As cinco dimensões no filme Interestelar (2014)
Reprodução/HBO
O conceito realmente se popularizou com os quadrinhos, mas se a gente for puxar o fiozinho da história, obras literárias como Peter Pan e sua Terra do Nunca (1911), de J. M Barrie, Alice no País das Maravilhas (1895), de Lewis Carrol, e até As Crônicas de Nárnia (1950), de C.S. Lewis, já se valiam da ideia. Mas não com esse nome.
O primeiro a chamar o conceito de universos paralelos de multiverso foi o escritor britânico de fantasia e ficção científica Michael Moorcock, criador do personagem Elric de Melniboné, em uma série de livros lançada em 1963 chamada Eternal Champion.
No cinema, a ideia de viagem no tempo, universos paralelos e loopings temporais foi amplamente explorada nas décadas de 1980 e 1990 com filmes como o clássico De Volta para o Futuro (1985), Peggy Sue: Seu Passado a Espera (1986) e Feitiço do Tempo (1993), entre outros, mas o conceito ganhou força na década de 2000 com filmes como Matrix (1999), Um Homem de Família (2000), O Confronto (2001), Efeito Borboleta (2004) e Interestelar (2014).
O multiverso das HQs é infinito na Marvel
Divulgação/Marvel Comics
Nas HQs, tanto a Marvel quanto a DC criaram sua própria cosmologia que conta com uma rede bem intrincada de seres primordiais e diversos mundos.
Mas, no MCU (Universo Cinematográfico Marvel), o multiverso é um conceito relativamente recente, apresentado pela primeira vez no filme Vingadores: Ultimato (2019), quando os heróis criam linhas temporais alternativas ao viajarem no tempo para tentar desfazer a destruição causada por Thanos.
A partir daí, as séries Loki e What If…?, disponíveis no Disney+, exploraram diversos mundos paralelos. Já o filme Homem-Aranha: Sem Volta para Casa validou as versões anteriores do aracnídeo dos primeiros filmes da Sony como variantes existentes em outras Terras do multiverso. O conceito em si pode ser confuso, e o próprio Doutor Estranho aponta para isso no filme do Aranha. Resta ao novo longa do feiticeiro explicar essa confusão multiversal.
Muita gente se pergunta, aliás, quem abriu o multiverso Marvel. Teria sido a Feiticeira Escarlate em WandaVision? O Loki em sua série solo? Ou o Homem-Aranha em seu terceiro filme?
Tudo leva a crer que foi Sylvie (Sophia Di Martino), variante feminina de Loki, que abriu as portas dessa loucura. Na série, ela mata Kang, Aquele que Permanece, responsável por fazer com que os diferentes universos seguissem um destino pré-determinado, evitando o caos.
Kevin Feige, o grande chefão da Marvel, reforçou essa ideia durante a pré-estreia de Doutor Estranho no Multiverso da Loucura: “Aquele que permanece se foi e isso permitiu que um feitiço desse errado em Homem-Aranha: Sem Volta para Casa, o que leva todo o multiverso a enlouquecer”.
Pois é, o conceito veio pra ficar e, da mesma forma que aconteceu com as Joias do Infinito no passado, deve permear boa parte dos próximos lançamentos da Marvel.
Homem-Aranha: Sem Volta pra Casa
Com a introdução do Multiverso, a Marvel abre possibilidades criativas que pareciam bem restritas em um universo que já conta com 28 filmes e seis séries interligadas.
É possível, por exemplo, começar a substituir os intérpretes dos principais super-heróis, muitos deles já expressando esgotamento depois de tantos anos. Assim, seria possível fazer um filme do Thor dentro da cronologia “oficial” e, de repente, também um longa de uma versão diferente do Deus do Trovão, vinda de outra realidade, interpretada por outro ator.
Além disso, pensar em outras versões dos personagens também permite trazer de volta heróis e vilões amados pelo público. Foi o que aconteceu com Loki, que foi trazido de outra linha temporal, depois de morrer no final de Ultimato, e ganhou série própria.
O multiverso pode ser a melhor forma de driblar a morte de alguns dos maiores pilares do MCU. Podemos ter até, como o final de What If…? sugere, um grupo de Guardiões do Multiverso. (Na série animada, que explora diversas realidades, os heróis dessas realidades são reunidos ao final para proteger o Multiverso. Fazem parte do grupo versões alternativas de Peggy Carter, T’Challa, Gamora, Killmonger, Thor e Viúva Negra.)
Além disso, se algum dos atores expressar a vontade de sair da franquia, ou tiver se tornado caro demais, tudo bem. Escolhe-se outros atores ou atrizes para serem os heróis de outros universos e está feito.
Aquele sonho dos fãs em ver Tom Cruise como o Homem de Ferro, por exemplo, está a uma negociação de distância. E nem é preciso se preocupar ou justificar eventuais mudanças de etnia ou gênero. Com o Multiverso, tá tudo liberado.
Há mais um ponto importante em jogo:
Carol Pimentel
Física e Editora de HQs
Voltando um tantinho no tempo: os direitos da adaptação para as telonas do Homem-Aranha, por exemplo, foram adquiridos pela Sony quando a Marvel ainda não tinha um estúdio próprio, e permanecem até hoje com a concorrência.
Mais ou menos na mesma época, lutando contra uma terrível baixa no mercado de quadrinhos, a Marvel também vendeu os direitos de adaptação de uma série de títulos para a Fox, incluindo toda a família de personagens dos X-Men e o Quarteto Fantástico.
No caso da Fox, está tudo solucionado, porque a Disney, que comprou a Marvel em 2009, também adquiriu o estúdio em 2019 e, assim, ganhou de volta para a Marvel os direitos sobre seus personagens. E o Multiverso é a saída perfeita para fazer o que eles bem entenderem tanto com os heróis mutantes liderados pelo Professor Xavier quanto com a trupe do Coisa e do Tocha Humana.
É possível usar os mesmos atores dos filmes anteriores para trazer os personagens para o MCU. Ou escalar novos atores para os papéis. também dá para considerar os filmes anteriores como realidades paralelas que podem, eventualmente, ser visitadas, como a Sony fez. O terceiro filme do Deadpool, já oficialmente confirmado, vem aí e pode tranquilamente misturar tudo, sem problemas.
No caso da Sony, no entanto, a coisa é um tantinho mais complicada, ainda que a relação entre os dois estúdios seja hoje bastante amigável. Depois dos filmes com Tobey Maguire e Andrew Garfield, a Sony quis trazer o herói escalador de paredes de volta. Mas o fato é que já existia o MCU. E o chefão da Marvel, Kevin Feige, queria muito colocar o Homem-Aranha na festa.
Aí, veio o acordo: Marvel pode usar o Homem-Aranha em seus filmes e, em troca, produz os filmes solo do Homem-Aranha, enquanto a Sony é quem distribui. Só que, diferente da Fox, não apenas a Sony não está à venda como tampouco a Sony está disposta a abrir mão dos personagens que comprou. E eles têm direito a tudo que envolve o Homem-Aranha, incluindo todos os vilões e coadjuvantes… E vão fazer muito uso disso.
Os três Homens-Aranha se encontrando em Homem-Aranha: Sem Volta para Casa
Divulgação/Sony
Depois de transformar Morbius e Venom em estrelas de seus próprios filmes, em breve teremos Kraven, Madame Teia e até o desconhecido El Muerto. E se a cena pós-créditos do filme do Morbius, aliás, for indicativa o suficiente, até a Sony pretende entrar na onda do Multiverso.
Aí, temos o Homem-Aranha do MCU de um lado e, do lado deles, provavelmente teremos um outro universo aracnídeo. Até o Abutre do primeiro filme do Homem-Aranha com Tom Holland deve migrar para esse multiverso.
Dá até pra dar uma pirada e imaginar que a Sony poderia liberar um Homem-Aranha só para o MCU enquanto usa outro Homem-Aranha em seu próprio universo. O mesmo Tom Holland interpretando dois papéis? Ou talvez o retorno de um Andrew Garfield da vida?
Possibilidades são muitas. Tremendas. Tão múltiplas quanto o próprio multiverso, muitas delas com potencial de multiplicação de lucros também. Resta saber se o público vai mesmo embarcar nessa.
Gabi Franco
Editora de filmes e séries na Tangerina, Gabi Franco é criadora do Minas Nerds, jornalista, cineasta, mãe de gente, pet e planta. Ex- HBO, MTV, Folha, Globo… É marvete, mas até tem amigos DCnautas.
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