Reprodução/Arquivo Dj Kool Herc
Este é um guia básico para você entender o contexto histórico e social por trás do surgimento do hip hop, movimento que transforma a sociedade através da cultura
Quando se fala sobre hip hop, umas das frases que mais toca o coração é “o hip hop salva vidas”. Antes de chegar às paradas do mainstream, estar presente em grandes festivais, ser considerado esporte olímpico ou figurar nas galerias de arte, o movimento percorreu um longo caminho. Aqui, a Tangerina vai tentar resumir essa história —aproveite para também conhecer 20 álbuns históricos.
O hip hop é uma grande entidade que age de maneira transformadora e traz autoestima. Por isso, ouvimos sempre que não é só um estilo musical, mas um estilo de vida. Você vive e respira aquilo. O movimento foi criado justamente com a intenção de transformar e mudar a realidade daqueles que estavam lá no início. Desde então, inúmeras vidas foram transformadas ao longo desses 49 anos.
Muitos ainda confundem e cometem o equívoco de resumir o hip hop apenas ao rap, que é uma das suas formas de expressão. Mas há muito mais. O rap foi um dos caminhos usados para exportar a filosofia do movimento. No entanto, para contar toda essa história, começaremos lá na grande festa de DJ Kool Herc (foto acima) e Cindy Campbell. Antes pegue seus fones de ouvido e sintonize em “I said-a hip, hop, the hippie, the hippie”
Ouça Rapper's Delight
Gabriel, o Pensador usou samples da faixa para criar 2345meia78
O hip hop é um movimento cultural que surgiu no início da década de 1970, no Bronx, em Nova Iorque. É difícil datar especificamente o início de manifestações culturais, mas, no dia 11 de agosto de 1973, aconteceu uma festa organizada pelos irmãos Cindy e Clive Campbell, mais conhecido como DJ Kool Herc. Lá, eles reuniram pelo menos três dos quatro elementos fundamentais do hip hop. É importante lembrar que não foi por acaso, mas, sim, o resultado de uma organização política semeada desde a década de 1960.
O DJ jamaicano é considerado um dos fundadores da cultura hip hop
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A música sempre foi importante para a cultura preta, pois desde o período de escravidão ela era uma forma dos negros se comunicarem. Foi, também, parte importante no desabafo da dor, o que gerou o nascimento do blues. E serviu como conexão com a religião, como vimos no gospel. A música preta, então, foi um fio condutor. Através dele, o hip hop desenvolveu sua voz —ou melhor, lírica— pelo rap, uma sigla para ritmo e poesia (rhythm and poetry, em inglês). Toda musicalidade que conta essa história foi propagada pela figura do DJ. Outro ponto importante nessa história é que o hip hop foi o primeiro movimento feito por afro-americanos livres e latino-americanos.
Segundo o rapper KRS One, conhecido como “The Teacha” entre os MCs, o hip hop é a união de uma classe social que era resultado do contexto político da época. Em um vídeo, que acabou virando uma espécie de domínio público, o artista fala sobre a organização do movimento na época em que estava emergindo.
Assista ao KRS One, o "The Teacha"
No vídeo, ele discute o movimento hip hop, ativismo, feminismo e política
De forma mais simplificada possível, é: breaking, grafite, DJ e MC! Mas, para entender como essas manifestações artísticas se tornaram os quatro elementos do hip hop, é preciso compreender a filosofia política e o contexto social em que elas foram criadas.
“Broken glass everywhere
(vidro quebrado por toda parte)
People pissing on the stairs, you know they just don’t care”
(pessoas urinando nas escadas, não estão nem aí)
— The Message, Grandmaster Flash
O mundo estava vivendo uma grande tensão geopolítica por conta da Guerra Fria (1947-1991) e da Guerra do Vietnã (1955-1975). Ambos os conflitos tinham a participação direta dos Estados Unidos. Durante a década de 1960, o país passou por um grande levante de lideranças negras, como Malcolm X, Martin Luther King Jr. e os Panteras Negras. Além de denunciar e se posicionar, eles também se manifestaram mundialmente diante das atrocidades que os negros estavam vivendo em uma sociedade racista. Esse movimento que começou lá nos anos 1950, estendendo até o desenvolvimento do hip hop, ficou conhecido como Movimento dos Direitos Civis.
Também estava acontecendo uma guerra antidrogas promovida pelo governo americano, que se intensificou mais entre 1971 e 1973, comandada por Richard Nixon. Na época, o então presidente precisava ganhar mais popularidade em sua campanha e aumentou, com isso, a repressão nos guetos americanos, com o aval de convenções e emendas da política antidrogas. A violência foi propagada em todas as partes com os noticiários de TV.
Antes mesmo de ser chancelado como um dos elementos do hip hop, o grafite foi uma forma de expressão de diversos artistas que pintavam os trens de Nova Iorque com suas marcas. Eles eram chamados de “escritores”. A manifestação artística era uma forma com que pessoas excluídas dessa sociedade encontraram para serem vistas.
Da visibilidade até a demarcação de território de gangues, a expressão logo encontrou outros elementos que também traduziam esse sentimento de invisibilidade na sociedade. Então, o grafite era a arte estampada e escrita; o rap, a forma cantada; o breaking, a expressão corporal; e o DJ, o grande responsável pela união e celebração disso tudo. Por meio dos toca-discos, ele trazia o conhecimento musical.
A festa de Cindy e do DJ Kool Herc foi o grande marco da união desses pilares. Em 12 de dezembro de 1973, o mesmo ano da festa, foi fundada a Universal Zulu Nation, um grupo internacional de conscientização da cultura hip hop. Liderada pelo DJ Afrika Bambaata, o coletivo tinha como objetivo pegar essas expressões culturais e promover a cultura hip hop como a melhor alternativa para salvar os jovens.
Esses são os princípios fundamentais, definidos pela organização Zulu Nation, que promovem o verdadeiro espírito do movimento. Foram eles que fizeram com que o hip hop se tornasse tão popular no mundo.
A ONG foi fundada pelo DJ Afrika Bambaataa
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Os anos 1980 também não foram fáceis no Brasil. Em 1985, chegava ao fim a ditadura militar e o país passava por uma redemocratização. A epidemia de crack começou a se alastrar nos EUA e chegava no Brasil. Nas periferias, a repressão e resquícios da ditadura continuavam.
O centro de São Paulo foi o local de encontro de grupos que se identificavam com o som e a mensagem do movimento de contracultura que crescia nos Estados Unidos. Por aqui, ele gerou curiosidade e identificação.
Esses caras passaram a se reunir na Galeria 24 de Maio e na Estação São Bento para dançar breaking, ouvir as novidades vindas de fora e compartilhar conhecimento. Nelson Triunfo é uma das grandes lendas vivas da cultura do breaking e um dos frequentadores daquela cena que estava se formando. Outros nomes fundamentais da época foram Thaíde e DJ Hum, que lançaram projetos importantes, como o álbum Pergunte a Quem Conhece, de 1989.
Largo São Bento é considerado o berço do hip hop brasileiro
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Antes da consolidação do hip hop, porém, rolaram dois acontecimentos importantes no Brasil. Primeiro, o show do grupo norte-americano Public Enemy, em 1984, na cidade de São Paulo. Depois, em 1988, foi lançado o primeiro álbum (ou primeira coletânea) de rap, o Hip Hop Cultura de Rua, pela gravadora Eldorado. O álbum foi produzido por Nasi e André Jung, integrantes do grupo Ira!, e foi neste projeto que Thaíde e DJ Hum se apresentaram para o público antes de lançarem Pergunte a Quem Conhece.
Também em 1989, o álbum Consciência Black, Vol. I saiu e marcou o grande início do grupo Racionais MC’s. Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay traziam em suas letras falas mais politizadas sobre a situação das periferias da Zona Sul de São Paulo. Além do grupo do Capão Redondo, a rapper Sharylaine foi uma das primeiras mulheres dentro de um movimento completamente masculino. A voz de protesto ecoou em diversas periferias e, a partir dos anos 1990, o rap começou a crescer fora do centro de São Paulo.
A música e o breaking se desenvolveram praticamente juntos no Brasil, mas a cena do grafite já se movimentava desde os anos 1970, como forma de intervenção artística e protesto durante a ditadura. Alex Vallauri foi um dos pioneiros da expressão artística no Brasil. O etíope radicado no país começou a pintar no cais do porto de Santos, cidade onde vivia com sua família, e retratava os personagens daquele lugar. Suas artes de protesto foram importantes para movimentos políticos, como o Diretas Já.
O artista começou a desenhar na cidade em 1978
Divulgação/Alex Vallauri/Irmo Celso
O hip hop se tornou um fenômeno mundial não apenas por sua manifestação artística, mas também por toda sua idealização e pelo poder transformador na vida daqueles que necessitavam e necessitam de mudança. Essa ideologia e o espaço dado para o jovem se expressar são os pilares que sustentam os quatro elementos da cultura. Hoje, é possível acessar mais detalhes de toda a história por meio de documentários, filmes, entrevistas e inúmeros conteúdos pela internet. E até isso também só foi possível porque os envolvidos no projeto são do hip hop.
Na entrevista de KRS One, citada no começo do texto, o artista fala sobre o fardo que ele carrega por ser parte da velha guarda —ou “old school”, como são referenciados no hip hop.
O movimento impulsionou não só as pessoas através da arte, dança e música, mas também as estimulou a serem donas de seus próprios destinos e acreditar no seu trabalho. Em um mundo que segrega, exclui e mata pretos, o hip hop salva. Hoje, são inúmeras iniciativas que utilizam o movimento para educar, empreender e entreter. Afinal, vale repetir, os princípios fundamentais são: paz, amor, união e diversão.
Mari Paulino
Mari Paulino é jornalista cultural, mas entrou na publicidade e trabalha com Music and Brands. Nascida na periferia da zona sul de São Paulo, é fã do Miranha, cultura hip hop, cultura pop, teorias da conspiração e skincare.
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