Divulgação/Lucas Nogueira
Semana agitada com grandes lançamentos traz ainda Kendrick Lamar, Florence + The Machine, projeto paralelo do Radiohead e Luccas Carlos; saiba o que ouvir
Hoje é um dia marcante para os fãs de rap. Sim, isso a gente já sabia, mas a novidade na minha agenda de músicas novas é outra: virou um feriado internacional para quem já foi emo, também. Além do sumido e genial Kendrick Lamar, tivemos mais uma reviravolta direto da gaveta, com o retorno de ninguém menos que My Chemical Romance. Honestamente, se eu fosse a banda e visse a galera querendo ressuscitar o emo, eu também voltaria para dar ao povo o que o povo pediu.
Nada mais justo que uma sexta-feira 13 para coroar tantas músicas novas —se já foi um significado de azar, tá na hora de rever isso no dicionário. Disco do Kendrick, Florence, Black Keys, The Smile, Luccas Carlos, música nova de My Chemical Romance e Xamã com Gretchen no clipe? Isso, pra mim, é sorte.
Quem é Kendrick? Para o faminto, é o pão
Falar sobre um lançamento do Kendrick é uma missão quase ingrata; como sempre, Mr. Morale & The Big Steppers tem referências, expressões e camadas que eu não tenho a pretensão de conhecer de cá, da minha realidade completamente oposta à dele. Mas desconhecer o universo completo de “Oklama” não é um impeditivo de forma alguma; mesmo na superfície, Mr. Morale soa absurdamente bem.
Não é à toa que Kendrick se equipara a Jesus na capa —similarmente ao seu amigo Ye, mas, ao contrário deste, com cuidado e mesmo humildade. Kendrick é de fato um missionário do rap, incansavelmente admirado, carregando um poder e um fardo talvez maiores que ele. Mas em Mr. Morales, a alusão parece ser mais ligada ao amor e ao sofrimento que à perfeição.
O que se ouve, aqui, é um testamento de um homem olhando no espelho, com culpa, conflitos, questões de paternidade, luto, fama, masculinidade e ego. Para tanto, o artista junta peças de todos os lados: um sample de Florence + The Machine (colega de lançamento!), a atriz Taylour Paige e colaborações que vão do seu primo Baby Keem a Beth Gibbons, a reclusa vocalista do Portishead. São artifícios, somente, compondo um mosaico que só Kendrick visualiza com clareza.
Musicalmente, o álbum não é menos rico. Dividido em disco 1 e disco 2, Mr. Morale flerta com o sagrado com frequência, no piano, nas cordas, no coro. Na mesma medida, tem lá sua faixa do Pharrell pra cumprir cota (como fazem as obras primas, né, Motomami?), elementos jazz que não saem de Kendrick (graças a Deus!) e até o hip-hop com produção típica dos anos 2020, mas não por isso menos eficaz. Mais uma vez, e de forma superior ao disco anterior, eu diria, Kendrick Lamar acaba por reafirmar que está onde está por um motivo —ninguém faz como ele. Ele sabe.
E essa talvez seja a conclusão final, o fim da discussão do artista com seu espelho: “I choose me, I’m sorry”. Tudo bem, Kendrick. A gente também escolhe você.
(E o que a gente entendeu como um teaser do álbum, aliás, nem chegou a fazer parte dele. Mas vale ouvir —e ver— The Heart Part 5, independentemente).
Nada mais assustador que ser adulto em uma década pandêmica
Nada que Florence Welch faz vem sem uma mitologia por trás. Nesse disco, a lenda que orquestra as canções é ao mesmo tempo uma sátira e uma realidade: Dance Fever é inspirado pela “coreomania”, uma praga medieval que fazia com que grupos dançassem até a exaustão ou mesmo a morte.
O curioso é que a metáfora se estende por muito mais que só o auge da pandemia. No momento de composição do disco, Florence estava mais distraída pela praga mundial que nos assolava —e as inevitáveis questões existenciais que se seguiram; hoje, no momento do lançamento do disco, talvez estejamos presenciando justamente o momento de dançar até a exaustão, em um movimento que tenta compensar e acaba por exagerar. De qualquer forma, Florence encontra em Dance Fever uma comparação inegavelmente relevante.
Teatral por natureza, a artista faz seu melhor trabalho quando entende o drama como ferramenta, não como escape; nesse disco, Florence está lutando com seu próprio vício do sagrado, enquanto lida com questões mundanas —e não por isso menos avassaladoras. É curioso que seja propositalmente lançado em uma sexta 13, porque aqui, o assustador é simplesmente existir: ser mulher, estar sóbria, ser artista, estar em uma certa idade, querer ser mãe, não querer ser mãe, querer ser completa. Ao longo do disco, acompanhamos uma Florence que não rodeia tanto suas próprias questões, mas as encara de frente —e as desenha pra nós, inclusive.
Dance Fever intercala produções de Jack Antonoff e Dave Bayley (Glass Animals), o que é tanto uma vantagem quanto um problema; se por um lado parece quebrar a coesão, por outro, transmite os altos e baixos que o disco pretende. A estrela de tudo sempre foi Florence e assim permanece: aqui, explorando novos graves, canções mais soturnas e uma percussão inconstante, que te arranca a respiração de forma bastante proposital.
Tudo isso pra dizer que, sim, vale a pena ouvir o novo da Florence: um disco mais Fever que Dance, convenhamos. Mas se você veio pelo dançante, melhor ir atrás da Dua Lipa.
Que sorrisos são esses?
The Smile é mais um daqueles nomes quase sarcásticos: a banda, composta por Thom Yorke e Jonny Greenwood do Radiohead, além de Tom Skinner (Sons of Kemet), não é pra mim a coisa mais próxima de um sorriso largo. Musicalmente, na verdade, é quase impossível reduzir o som a uma expressão emotiva somente; The Smile pede, pelo menos, uns 5 emojis diferentes.
Sorrisos ou não à parte, o primeiro disco do “side project” do Radiohead é inconfundivelmente um side project do Radiohead, sem que isso seja um problema. Tem aquela estética quase flutuante, que divaga, mas às vezes eclode; a percussão de Skinner tem aquele elemento crescente que esbarra com o dançante, mas sugere uma angústia. Como tudo que Yorke e Greenwood tocam, o álbum existe em uma aura própria, sensível, sereno e aflitivo ao mesmo tempo.
Confesso que não tive nem tempo, ainda, de mergulhar no disco como gostaria: A Light for Attracting Attention requer atenção, como ele mesmo impõe, requer uma noite contemplativa e o fone de ouvido dedicado. Mas mesmo sem todos esses elementos, dá pra sentir o principal: isso aqui não é um álbum qualquer.
Se é para o bem de todos, digo ao povo que fico
Em tempos de álbuns póstumos, hologramas e Travis Barker, nada é tão antigo que não possa ser revivido —e era só questão de tempo até que o My Chemical Romance reaparecesse. Afinal, já diria algum dos Dons Pedros, “se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, digo ao povo que fico”.
Mas de surpresa é mais gostoso. E foi assim, sem anúncio nem aviso, que o MCR apareceu com música nova nesta quinta-feira. Considerando o histórico da banda, nome da música (“fundamentos da decadência”) e sobretudo o timing, era de se esperar que o grupo desse uma de Avril Lavigne e retornasse com o emo melodramático avermelhado de sempre —uma espécie de pastiche de si mesmo— mas o tempo se passou e, ainda bem, a banda sabe disso.
É gostoso ver um grupo musical que está mais preocupado em fazer o que quer —e respeitar a passagem do tempo— que se vender à nostalgia fácil de hoje. Com Foundations of Decay, o emo está mais no tom melancólico e sombrio das letras e nos gritos (ah, sim, os famosos! queridos! saudosos!) de Gerard Way; a faixa, de exatos 6 minutos, se aproxima do metal e punk, uma ode gloriosa ao rock como válvula de escape.
Você dá play pelo que já conhece, mas recebe algo bem melhor do que espera. Ainda bem.
Um pagodinho, um R&B, um Lulu Santos
Hoje teve felicidade pra todo mundo, inclusive para os fãs de Luccas Carlos, que há muito esperavam pelo disco completo. Seguindo o novo ciclo de vida de artistas, o cara já acumulou seu primeiro milhão de ouvintes mensais até antes do seu primeiro álbum —coisa que só as Billie Eilish da vida têm o privilégio de viver.
Romântico que só, Luccas passeia pelo R&B melódico repleto de declarações, visita o pagode, elenca influências brasileiras e gringas com gosto. O resultado é repleto de personalidade, como não poderia deixar de ser; tem um cavaquinho aqui, um trap ali, um Lulu Santos acolá (em uma faixa cuja produção me foi bastante surpreendente para uma faixa com Lulu, inclusive).
Assista ao clipe de Se Você Deixar
Música está no álbum jovemCARLOS
“Concorrendo” com grandes lançamentos em um dia agitado, jovemCARLOS consegue se destacar em seu jeitinho discreto, mas que pede atenção; não é uma obra prima, mas uma boa introdução de alguém que mal chegou e já não precisa se provar. Como autoafirmação, funciona muito bem —reforçando que, quando se trata de Luccas Carlos, dá pra ouvir um pouquinho de tudo sem medo.
Ele tá de boa, na dele, chega mais. Se quiser.
Uma música repleta de hacks
Você pode estar se perguntando: o que é um dublê de marido? Felizmente, Xamã te explica: “dublê de marido é o cara que faz tudo que o marido normal faz, mas sem ser o marido”. Entendeu?
Dublê de Marido (a faixa, não o conceito) é o primeiro lançamento solo do artista desde Malvadão 3, o grande, gigantesco, inegável hit. Depois de três tentativas de se consolidar como o malvadão, agora temos o segundo maior problema de um artista comercial —ser assombrado pelos seus próprios sucessos, na pressão de conseguir outro.
Assista ao clipe de Dublê de Marido
Gretchen contracena com Xamã no vídeo
Nessa nova faixa, Xamã está hiper ciente do desafio, usando de todas as armas possíveis. Mantendo a estética musical do artista (um misto de trap, funk e R&B), Dublê de Marido é um mix de tudo que deu certo na relação música-internet até hoje; com um pouco de autorreferência, trechos musicais desenvolvidos pensando no TikTok e a presença infalível de Gretchen, a mulher-meme, no videoclipe —no caso, ela é a tal “malvadona”.
É uma estratégia um pouco apelativa pra manter o sucesso adquirido até aqui, mas não faz mal. Xamã não é o tipo de artista que nega seu lado comercial. O problema, pra mim, é que Dublê de Marido esbarra muito na mesma fórmula musical que já ouvimos dele; não é bem uma música nova, mas uma espécie de Malvadão 3, parte 2, o retorno.
Mas, como sabemos, tudo sempre está a uma dancinha da Vanessa Lopes de hitar.
Outras em uma frase
Polaroids – Betina, Boogarins:
ouça aproveitando o resto da droga que você usou ouvindo The Smile.
Dropout Boogie – The Black Keys:
essa é a “música de verdade” que seu pai tanto fala.
Esquece Essa Disgrama – Os Barões da Pisadinha:
a rima é tão natural que eu custei a entender que a música foi, sim, encomendada pela Brahma.
———————————————————————————————————————
Mais uma sexta movimentada de músicas novas por aqui, não? Se você for contar todas as vezes que vai precisar ouvir o disco do Kendrick pra começar a absorver o conteúdo, já vai embora seu dia inteiro. E é assim que a gente gosta.
Estamos bem alimentados de músicas novas boas, eu diria. Tanto que, se você ainda não tiver ouvido o disco do Jack Harlow, provavelmente vai esquecer de ouvir hoje também.
Quem sabe semana que vem?
Dora Guerra
Dora Guerra é pesquisadora musical e pensa mais sobre o tema do que deveria. Na Tangerina, publica a coluna Fresquinhas!, sobre lançamentos musicais. Suas posses incluem: a newsletter Semibreve, o podcast Queijo Quente, uma vira-lata caramelo, alguns vinis e uma vitrola estragada.
Ver mais conteúdos de Dora GuerraTangerina é um lugar aberto para troca de ideias. Por isso, pra gente é super importante que os comentários sejam respeitosos. Comentários caluniosos, difamatórios, preconceituosos, ofensivos, agressivos, com palavrões, que incitam a violência, discurso de ódio ou contenham links vão ser deletados.
Ainda não tem uma conta?